31.7.07

Postais algarvios: os capitães de borda-d’água



(Quase como se fosse um simpatizante da extrema-esquerda caviar ou do partido saudosista de Moscovo dos tempos áureos)

Estar de férias numa estância que bordeja uma afamada marina tem riscos. E contrapartidas, há que o admitir. O espaço é deslumbrante, desde que seja madrugada e as pessoas estejam embrulhadas nos lençóis. Ou que o pôr-do-sol seja admirado de uma janela que cerceie o horizonte à passagem da muita gente que se pavoneia na avenida marginal. Os iates aportados emprestam um ar pitoresco. E fartamente burguês também, que por ali ululam muitas vaidades num frémito de ostentação. A par com fortunas ancestrais, das famílias de boas linhagens que se espraiam pela linha de Cascais e curtem as carnes nos seus iates luxuosos.

Estes barcos que custam fortunas colossais não me retiram o mínimo esboço de admiração. Não fico boquiaberto diante do último grito da moda estacionado na marina. Não acastelo sonhos idílicos pensando nos momentos inolvidáveis que poderia passar caso a abastança material tivesse a simpatia de me pagar uma visita, indo logo a correr a um stand da linha de Cascais encomendar iate com todos os preceitos da moda. Navegar nas plácidas águas algarvias não faz parte dos meus prazeres sublimes. Respeito quem tenha preferências opostas. Percebo que haja pessoas extasiadas em capitanear um iate destes, a motor ou à vela, de grande ou pequeno calado, em águas calmas ou furando a fúria das ondas. E que certos arrivismos sociais obriguem a manifestações de ostentação de empertigados proprietários destas embarcações, que esbofeteiam os comuns mortais com manifestação da abastança sinalizada pela embarcação aportada.

Nada disso me enoja. Não gosto, não o faria se algum dia a prodigalidade material se encostasse à minha porta. Coisa diferente é estar na fila de um supermercado e conviver meia dúzia de minutos com três proprietários de embarcações que ali coincidiram. E que travaram conhecimento enquanto esperam que o cartão de crédito de platina pague os mantimentos acotovelados no carrinho de compra. O cartão de platina, lentamente exibido perante a funcionária da caixa. Para que quem vem atrás tenha tempo de se aperceber que o cidadão possui platinado cartão. Para quem não saiba, sinal de riqueza na certa. E se à primeira sinto asco por todo aquele exibicionismo, esbarro num turbilhão de sentimentos contraditórios. Já não é asco, é comiseração. Já não é asco, é contemplação por haver sempre a necessidade de alguém que faz as vezes de palhaço, os bobos da corte que o são sem darem conta da façanha que cometem.

Ali, em meia dúzia de minutos, fiquei a saber o calado das embarcações dos pipis de Cascais. Que um deles “praticamente” nasceu a navegar. O mesmo que não resistiu a contar a gloriosa história das três representações que “sacaram” numa feira de iates em Londres. E que todos trajavam pólos de marcas conceituadas, bermudas coloridas de marcas que timbram os navegantes, o exigível sapatinho de vela. Indisfarçável homogeneidade que tributa a tanta vacuidade vomitada numa singela meia dúzia de minutos.

Estou enquistado ao turbilhão de paradoxos. Comecei por exalar o enojamento dos capitães de borda-d’água que se entretinham em conversa vã. Empurrei o estigma para trás das costas, ensaiando humorística reacção diante das risíveis personagens. Mas regresso às dores de cabeça, quando dou por mim dominado por uma súbita vontade de ser militante devoto do PC, ou frequentador assíduo dos acampamentos de Verão do Bloco de Esquerda, só como reacção a estas figuras da alta sociedade lisboeta. Terapêutico seria desviar a atenção, ignorar a palavrosa conversa cheia de tiques tão próprios de pessoas bem situadas na vida que desfilam entre Cascais e Lisboa. Seria. Incapaz disso, vejo-me prisioneiro do desencantamento de mim pela antítese dos outros, daqueles que me levam à repugnância. E depois há este sintoma doentio, de querer ser o que sempre mais rejeitei na vida apenas por reacção adversa a outros que me trazem o vómito intelectual.

Sintomas das férias que só agora começam, o cansaço que destempera o discernimento e leva a atenção por onde ela deve andar ausente.

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