17.7.07

Dressing code


Fixam-se convenções, mil e uma, para tudo e mais alguma coisa. Convenções que impõem observância obrigatória. Ou os dissidentes são enclausurados numa prisão sem grades, a pior das cadeias: a censura das maiorias habituadas à normalidade, que apontam o dedo às ovelhas tresmalhadas do rebanho tão ordeiro.

Alguns, ciosos da disciplinada vida em grupo, entretecem laborioso argumentário: imperativos, os sinais de pertença ao grupo; e todos os indivíduos devem declinar a sua individualidade perante a inclusão na sociedade. As convenções cimentam essa pertença. Ai de alguém se delas se afasta. Sobre ele pesará a espada lancinante da exclusão. Ensinam-nos que não é o grupo que os exclui. É auto-afastamento, por repulsa das convenções estabelecidas. Ao que acresce o incómodo lastro de ser visto pelos demais como aberração.

Há destas convenções espalhadas à nossa volta, um cerco asfixiante à individualidade. Por mais que os engenheiros sociais e os arautos da normalidade enfatizem que são regras de sociabilização, de imperativa verificação como sinal de inclusão no grupo, há o espezinhar da individualidade dos que não se revêem nos códigos a que são coagidos se querem engrossar a imparável maré dos que remam para o mesmo lado. Há ideias que não convém professar em público, logo se vergando ao estigma da marginalização por desafinarem dos padrões bem pensantes. Temos que vestir o que está estipulado para certas situações, ou o vestuário que desalinha dos padrões é entendido pelos sacerdotes das convenções como manifestação de exclusão.

Só o totalitarismo das mentes inquietadas com a paciente arquitectura de um rebanho muito ordeiro e homogéneo é que acata o atropelamento do livre arbítrio de quem não se revê nas convenções estabelecidas. Trata-se de apurar o que vale mais – se a individualidade do ser, se a submissão do ser aos imperativos do grupo, quando o ser entra por meandros exóticos. Alguns, penhores das convenções que fixam a sã convivência em grupo, ofendem-se com os que se distanciam do padronizado. Acham que há nessa atitude uma provocação inaceitável por ameaçar a solidez do edifício social. Não curam de perceber as motivações dos que são olhados com a suspeição tão típica do rótulo de aberração. Em vez da inquirição do que os motiva a rejeitar as convenções, adivinham que se trata de provocação. Pelo caminho, arremata-se a sentença: à provocação aos usos sociais que pode esboroar o cimento do grupo, responde-se com a exclusão, estende-se a passadeira para as proibições. Os comportamentos que ousam desalinhar do estabelecido são interditados.

Vou invocar o exemplo de sociedades tão ocidentais como nós mas que se inspiram numa matriz cultural diferente – as sociedades anglo-saxónicas. Há uma tradição arreigada de respeito pelas decisões individuais, sem que elas sejam encaradas com o perfume da provocação quando se afastam das convenções estabelecidas. A ninguém é vedada a entrada por ostentar um aspecto diferente, por trajar vestuário bizarro, por adornar o corpo com piercings ou tatuagens, ou até, no caso das senhoras, pelo minimalismo das vestes. Prevalece a abertura de espírito para aceitar que os outros, os que não pactuam com as convenções, tenham direito à cisão. As sociedades anglo-saxónicas preservam o império do livre arbítrio, que se sobrepõe sobre o fanatismo dos códigos de pertença social como escrupulosos roteiros. Temos muito a aprender com as sociedades anglo-saxónicas. Lamentavelmente, o viés da análise impede que o paradigma de mudança desejado actue quando esbracejam sanções contra atitudes dos que são levados ao ostracismo social.

Não consigo ser juiz dos comportamentos alheios. Não esperem que exerça este papel, cerceando o acesso aos que trajam vestuário que provoca as convenções, aos que ostentam adornos que chocam sensibilidades. Ainda que esse vestuário e os ditos adornos estejam nos antípodas da minha estética, ainda que fosse incapaz de assim vestir ou de andar tão tatuado ou preenchido de piercings. O monolitismo da aparência, do discurso, das ideias, das convenções que se impõem com a força perene, é um espartilho aos que de tudo isto são dissidentes. E a menos que a democracia já não se conjugue com tolerância, sou incapaz de caucionar esta engenharia social que, afinal, se confunde com um qualquer totalitarismo.

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