9.7.07

Dom Narciso


Era uma vez um homem muito pequenino que queria ter a estaleca dos predestinados, sobredotados espíritos que vogam com douta sabedoria acima de todos os outros, humildes mortais. Um ego que não se sabe conter dentro das fronteiras do ser. Extravasa a brilhante aura, aspergindo pozinhos da mente brilhante em seu redor. Os que os rodeiam são agraciados pelo sublime dom da sua existência. Agradecem, penhorados, pela sapiência inigualável.

Todos os dias, quando se olha ao espelho, o narciso admira-se. Contempla a sua existência e percebe que o próprio espelho dá graças por receber a cintilante imagem que exala do seu ser. Congemina, pela manhã, mais um acto de exaltação pessoal. Como não se contenta com o conforto íntimo dos feitos alcançados, é tomado por uma tremenda necessidade de mostrar aos outros como se alcandora ao púlpito dos escolhidos, daquele escol que ambiciona, e consegue, adejar numa dimensão quase sobre-humana.

Dir-se-ia que representa o sucedâneo das entidades divinas em plena Terra. Sem perder de vista a urgência em exibir a refulgente aura, para marcar a diferença em relação aos demais, com certeza à espera que os demais prestem a vassalagem que trina o reconhecimento da imponência científica do narciso. Seguem-se as genuflexões da praxe, com a passadeira vermelha estendida para que os pés narcísicos não se maculem com a sujidade por onde os demais vegetam a sua vida.

Não se cansa de vomitar proezas para cima dos seus pares. As proezas assim descritas, com pormenores que desalinham dos cânones, vêm empalhadas na retórica do culto da personalidade. Ao longo dos fartos anúncios de feitos do predestinado narciso, há a linguagem perfumada com o panegírico em nome próprio. Na espantosa capacidade para esfregar o seu próprio ego, de mão dada com a cegueira que o impede de discernir o ridículo que o abraça. Decerto não compreende que é o único a publicitar proezas que entram no domínio do etéreo, como se os demais fossem uma corja de preguiçosos que vagueiam nas catacumbas da esterilidade científica. Ao deitar, quando por demorados minutos volta a admirar a sua existência diante do espelho, reforça o convencimento que tem de si mesmo: faz a contabilidade de merceeiro e compara a diarreia de proezas que publicita com a ausência dos seus pares. Deita-se com o reconforto de saber que sozinho produz incontáveis vezes mais do que os seus pares todos juntos – e eles são umas largas centenas!

Aprecio o narciso. A vida seria tão mais aborrecida se não houvesse motivos para sorrir. Seriam entediantes os dias percorridos através da normalidade instituída, presa aos ditames canonizados. Há, de vez em quando, personagens saídas de um conto fantástico com o dom de cercear a monotonia tristonha. Destoam. Chamam a atenção: a verve imparável, a fantástica essência – e o fantástico, reza o dicionário, diz-se do criado pela fantasia. Tão depressa jorram pinceladas feéricas do auto-convencimento, como brota a vozearia só ao alcance das aberrações a destempo. Personagens valiosas: destroem a entediante repetição dos dias, saltando por cima das barreiras do trivial; espalham as sementes do folclore de que precisamos, nem que seja para que o sorriso reprimido pela entediante repetição dos dias se liberte das catacumbas onde vive aprisionado.

E, contudo, temo que haja patologia furtiva nos interstícios de Dom Narciso. A urgência em esbofetear os seus pares com os sedimentos de uma produção infatigável, que não poupa nos encómios a si mesma, mostra recalcamentos de tempos idos. No contraste com os dias da glória, tão pródigos em proezas fantasmagóricas, façanhas embrulhadas em originalidade cansativa, porque de tão repetitiva perde o timbre do ineditismo. Sinal dos tempos: vingam os despudorados que se apresentam como sacerdotes maiores da ciência, quando consta que não passam de actores menores que, ululantes, se colocam em bicos dos pés para serem reconhecidos como expoentes. Pena que só o narciso se veja a si mesmo como expoente. Expoente da sua pequenina e épica existência.

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