17.5.07

Vai estudar, malandro!


Pensei duas vezes antes de escrever este texto. Ele vai ser cáustico para as comissões de praxe, dux veteranorum e outros arcaísmos que abundam nas universidades. As palavras que se seguem poderão soar a moralismo. Daí a razão para a hesitação: odeio moralismos de qualquer espécie. Se acaso houver ressonância de moralismo, que se entenda que essa não foi a minha intenção.

Acontece que na vetusta Coimbra universitária houve mais praxes violentas. É recorrente. Costuma ser no início do ano lectivo, como mercê de socialização dos estudantes neófitos. Os patéticos “códigos” que regem a actividade da praxe prevêem a possibilidade dos caloiros se submeterem a praxe em qualquer momento até à queima das fitas. Foi o que aconteceu na semana passada, naquela que seria a última humilhação que alguns acatam com um plácido sorriso nos lábios. Como acontece às vezes, a praxe passou dos limites. Para azar dos carrascos, uma vítima denunciou os insuportáveis maus tratos. Terá sido agredido na cabeça, o que o fez receber tratamento hospitalar.

Ontem apareceu o focinho de uma criatura qualquer que tinha responsabilidades na “fiscalização da praxe”. Não percebi se seria um ilustre manda-chuva da comissão de praxe ou o dux veteranorum, essa figura emblemática das universidades, estatuto que os ditos ostentam com um orgulho sem que cheguem a perceber o ridículo em que mergulham. A criatura aparentava já ter entrado na terceira década de vida, daí a sua veterana condição. Falava com uma pesporrência grotesca. Começou por rejeitar as agressões que, “alegadamente”, teriam levado o caloiro à urgência do hospital. Para passar ao “registo oficial” da tourada: que sim, tinham rapado os pelos das pernas a alguns rapazes; que sim, até tinham rapado pelos púbicos a alguns. Com a naturalidade de quem vai ao café e pede uma água das pedras.

A criatura já tem idade para estar a trabalhar, em vez de andar a passear a sua condição de parasita social. Porventura é a ausência de discernimento – os brasileiros diriam que esta criatura “não se enxerga” – que o levou a descrever a disparatada praxe com um misto de naturalidade e bazófia. Não lhe ocorreu (e aos demais brincalhões) que a intimidade das pessoas é limite que não pode ser pisado, nem em nome da (pensam eles) sacrossanta praxe. Arrancar pelos púbicos aos infelizes caloiros? Quero acreditar que o álcool, que jorra com abundância nas veias destas lúdicas personagens que dedicam o seu tempo ao entretenimento e às “tradições académicas” em vez de fazerem aquilo que deles se espera (estudar), o álcool toldou o discernimento destes veteranos e fautores da praxe coimbrã.

Se nem a intimidade dos alunos resiste à avassaladora praxe, vou concluir que a praxe é uma coutada muito especial. Escapa às leis gerais. Todavia, esta conclusão não legitima os abusos da praxe. Tenho que confessar a embirração pessoal com praxes e anacronismos que, paradoxalmente, se procuram modernizar pela pior das razões – com os exageros de que se tem conhecimento, com a imbecilidade impensável, dando razão aos cépticos que acreditam que a criatividade humana está, na maior parte dos casos, ao serviço de maléficos desígnios.

Não posso deixar passar em branco um detalhe delicioso. Nas comissões de praxe costumam emergir os garbosos marialvas da universidade. Aqueles que se aproveitam da sinecura para se destacarem entre os seus pares, passeando a verborreia fácil como ingrediente para a conquista de donzelas que caem, com maior ou menor ingenuidade, na esparrela. E são os mesmos exemplares do másculo orgulho que se dedicam a arrancar pelos púbicos a desafortunados neófitos forçados a acatar a praxe caricata. Dou conta de alguma homossexualidade reprimida entre os máximos representantes da comissão da praxe, que se emprestam ao altar do orgulho masculino? Se fossem aquilo que apregoam, não se prestavam à tarefa ignóbil – e nada máscula – de furtar pelos públicos a estudantes do mesmo sexo.

O veterano que saiu em defesa da patética praxe discorria palavras vãs, sem dar conta que a cada palavra vomitada se afundava no precipício do absurdo. Como me doeu saber que um cêntimo que seja dos meus impostos subsidia o parasitismo deste e de outros comparsas do género. Que eles não percebam a indigência em que se colocam, é revelador da curteza de vistas. É problema deles. Eu cá não gosto de manter preguiçosos na indolência militante. E como aos sindicalistas e outros preguiçosos sociais digo “vai trabalhar malandro”, a estes folclóricos espécimes do meio universitário sobra o convite: “vai estudar, malandro”!

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