18.5.07

As esquerdas já não são românticas?


Acompanho com enternecimento a polémica que envolve Paul Wolfowitz, presidente do Banco Mundial. Vem acusado de nepotismo. Terá favorecido a sua namorada, funcionária daquela organização, autorizando-lhe um salário astronómico. Wolfowitz já pediu desculpas em público, num acto de humildade que engrandece. Falta saber se não terá sido apenas um acto mais a juntar às encenações de que os políticos são capazes, com aprumo e mestria.

Houve nepotismo? Deve ser punido? Como? Abandonando a presidência do Banco Mundial? São as perguntas que não me trazem a este texto. Percebo que haja muitos abutres salpicando saliva do canto da boca, pedindo a cabeça de Wolfowitz. Vão ao baú das memórias: Wolfowitz foi um dos arquitectos da intervenção externa de Bush Jr. Esteve no âmago dos neoconservadores, com a visão unilateral e belicista do mundo, expoentes máximos dos Estados Unidos que tanto desagradam a tantos. Daqui o digo: é nutrida a antipatia pessoal pelos Estados Unidos. E se Wolfowitz representa o que representa, não há nada que me motive simpatia pela personagem. Só me recuso a alinhar no folclore do antiamericanismo primário. Por ser antiamericano por outras razões, e porque rejeito andar de mão dada com o oportunismo ideológico de amanhãs que cantam que, contudo, estão órfãos de tenor.

E percebo a urgência em decepar Wolfowitz: ainda carrega o lastro de ideólogo de Bush Jr. A queda de Wolfowitz é a derrota dos Estados Unidos. Seguindo a retórica destes justiceiros do mundo, é a vitória do bem contra a representação do mal. Dispenso o binómio simplista. Não quero, contudo, patrocinar o branqueamento do inaceitável nepotismo, ainda para mais vindo de quem devia dar o exemplo.

Afino agulha para o que interessa: as esquerdas perderam o norte ao romantismo? Convém explicar o contexto da interrogação: as esquerdas, em doses variáveis, sempre se apresentaram como penhoras de uma visão romântica da política e da sociedade. Sempre pródigas em enaltecer os valores humanos, depreciando o materialismo das relações humanas, mais um sinal de como o capitalismo selvagem e a globalização são tão nefastos. São essas esquerdas que exigem a demissão de Wolfowitz, aproveitando para cimentar a imagem de sacerdotisas da moralidade. Passam uma esponja pelas motivações que terão levado Wolfowitz a privilegiar uma funcionária do Banco Mundial com quem partilhava lençóis. Desvalorizam o acto heróico do presidente do Banco Mundial, que quis fazer prova de amor – ainda que tenha abusado do poder para o mostrar. É nepotismo? Será. Mas, não o podem as esquerdas negar, é também um romântico acto, o sinal maior dos laços que o prendem à senhora que passou a auferir um salário astronómico.

Wolfowitz foi um romântico no tempo errado, no local errado, no contexto errado. E teve um erro de análise, ao querer compensar os afectos através de salário generoso. Foi atraiçoado pelo Cupido que o atacou em força. Mas foi uma lição: de como devemos compensar as nossas amadas. Uns perdem a cabeça em prendas mirabolantes que os colocam financeiramente no prego. Outros puxam lustro à imaginação e presenteiam inesperadas viagens exóticas, ou inopinados poemas, ou um dia num spa para relaxamento terapêutico. A Wolfowitz só ocorreu torcer as regras para que a companheira tivesse alcavalas ilegítimas. Lá dirão os mais cáusticos que, afinal, o presidente do Banco Mundial caiu na armadilha dos afectos inquinados pelo valor material, pois a prenda repetia-se todos os meses na forma do chorudo cheque pelos serviços prestados.

Um detalhe insignificante, na minha maneira de ver. Às esquerdas não convém reconhecer o gesto impregnado de romantismo na louca acção de Wolfowitz. Elas, que tanto apregoam a igualdade, afinal tratam situações iguais de maneira desigual. São capazes de placidamente heroificar um sanguinário como Che Guevara, em nome de ideais que tresandam ao mesmo romantismo que conduziu Wolfowitz à humilhação de ser desmascarado em público. São romantismos diferentes, com motivações que divergem, como diferentes são os instrumentos. Em ambos os casos são líricas perspectivas do mundo que nos toca. Afinal Wolfowitz não matou ninguém quando caucionou o salário principesco à companheira. O mesmo não vale para Che Guevara.

Suspeito que esta caça às bruxas não passa de um ajuste de contas. Expoente do neoconservadorismo, Wolfowitz teve uma juventude de entrega aos ideais – tão cheios de romantismo – do trotskismo. O tempo amaciou o radicalismo e juntou muitos militantes da extrema-esquerda nas fileiras neoconservadoras que ajudaram Bush a conduzir os Estados Unidos. Talvez esse seja o pecado capital de Wolfowitz. O julgamento está na praça pública, para gáudio de algumas esquerdas que não perdoam que certas ovelhas se tenham tresmalhado, e de outras esquerdas que não perdem o ensejo de crucificar a demoníaca “América”. Esta é a hora do acerto de contas. Nem que haja que empalhar o ternurento e oportunista romantismo que distingue estas esquerdas. É só uma ligeira incoerência…

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