19.4.07

O fanático é uma pessoa muito generosa


Ontem foi distribuído, com o Público, um livro que recebeu encómios de diversos quadrantes. Escrito por Amos Oz, um israelita desencantado com as inglórias tentativas de pacificação entre judeus e palestinianos, o livro sugere o divórcio de territórios para conter a violência congénita. Do que trata o livro não posso dar testemunho, porque não o li. Na retina ficou uma frase do autor, transcrita no editorial do jornal: “o fanático é uma das mais generosas criaturas. O fanático é um grande altruísta. A todo o momento, está mais interessado nos outros do que em si próprio. Porque a essência do fanatismo reside no desejo de obrigar os outros a mudar”.

É uma visão desassombrada – o fanático é um altruísta. Poderá chocar as mentalidades. Mas é verdade. Porque o fanático esforça-se por contagiar os outros com a sua visão da verdade. Os outros terão tido a infelicidade de estarem desavindos com a forma certa de ver, actuar, pensar, falar. É como os pastores, que parecem errar na transumância mas sabem por onde conduzir o rebanho. São penhores da confiança do rebanho que, não fosse a entrega descomprometida, andaria ao deus-dará.

Nas imagens de uma bomba deflagrada por um militante suicida que levou consigo meia dúzia de inocentes, a generosidade está lá – ainda que escondida. As emoções que protestam contra o acto grotesco levam à reprovação da violência gratuita. A conclusão está deformada por um vício de raciocínio: o bombista suicida entregou-se a uma causa, despiu-se da sua individualidade. Há acto maior de altruísmo? Podemos conceber maior generosidade do que uma pessoa abdicar de si e acomodar-se no regaço da morte em nome da causa de que se diz seguidora? Por este ângulo, todos os fundamentalismos exalam generosidade. Tanto mais que os fanáticos estarão preparados para explicar que mesmo as vítimas levadas no ensandecido acto do suicida estarão melhor se forem mergulhadas no negrume da morte do que na infâmia das ideias erradas.

É óbvio que há um cinismo podre nos interstícios do fanatismo generoso. O problema deste altruísmo é a violação da vontade dos destinatários. Que, afinal, são transformados em vítimas. Quando o produto do altruísmo é forçar a vontade de alguém, o altruísmo é um presente envenenado. Quando o altruísmo conflui na imposição de comportamentos, ou em liquidar a vida de alguém, é de falácia que falamos. Tenha este altruísmo retórico a natureza que tiver: sejam os ataques bombistas traiçoeiros que espalham morte e dor entre inocentes judeus; sejam as balas disparadas pelas armas de países que defendem a civilização ocidental, mais os seus valores intocáveis, espalhados a todo o mundo; sejam as manifestações de força bruta que torcem o braço, e a vontade, dos que são obrigados a submeter-se pela razão da força; sejam (parece-me) missionários, sacerdotes, pregadores, doutrinadores, opinadores, moralistas e outros tantos que não me ocorre identificar, que difundem ideias, crenças, valores, dogmas, éticas incontornáveis, etc.

Os fanáticos não são apenas aqueles que usam a violência física como instrumento. A palavra também é arma de arremesso que destapa a máscara que esconde fanáticos que o não parecem. Nos dias que correm, com tantos moralismos estendidos até aos umbrais dos comportamentos individuais, fervilham os fanatismos que parecem abúlicos. É a fobia ambientalista, a luta contra o tabaco, o álcool, outros vícios privados, uma infindável sequência de pequenas coisas que são o nutriente para aconselhadores encartados que discorrem, com pesporrência, a sua superioridade moral. Aos destinatários da mensagem assim aspergida, só resta soçobrar perante tamanha eloquência. Acaso exista o mínimo sinal de dissidência, carregam a cruz dos alienados do “deve ser” contemporâneo. É nestes fanatismos que cerceiam a liberdade individual, que identifico as raízes de um inditoso pensamento único que soergue, omnipresente e vigilante.

Aplico a ideia do fanatismo despido de malsãos atributos, reconciliado com o arrebatador altruísmo: apodera-se-me a tristeza de saber que mesmo as trocas de ideias aprecem inquinadas pela generosidade de fanatismos encapotados. Por isso é que exibições de desonestidade intelectual são tão frequentes; por isso é que a impaciência goteja, quando os argumentos contrários teimam e parecem levar vencimento. Porque, como sugere Amos Oz, mesmo nestes inocentes debates aparece o vício do fanatismo: o “desejo de obrigar os outros a mudar”. Não que o seja através da violência bruta, mas dos jogos de sedução retórica, da mensagem disforme, das tácticas manipuladoras que escondem os objectivos da doutrinação.

Saio desta análise destemperado: admito que nem as simples trocas de ideias merecem crédito, tão enviesada é a discussão entre os proponentes. Resta saber se fará sequer sentido opinar em sentido unilateral. Pois se até essas simples opiniões podem ser recolhidas como instrumentos de doutrinação. Talvez seja o momento de repensar os conceitos: o altruísmo é um dom recomendável?

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