30.4.07

Dos fracos não reza a história?


Há preceitos enraizados nos hábitos que parecem indeclináveis. Garbosas narrativas enaltecem a bravura dos que deram o peito às balas, enfrentaram o desconhecido, ousaram desbravar caminhos por inóspitas veredas, e vingaram. A História está preenchida de narrativas de audácia. E ainda que vivamos tempos que muitos chamam “pós-modernos”, parece que a instrução de carácter permanece presa à exigência da coragem. Na vindicação de que a história não deixa registo dos fracos.

A persistência no preceito causa-me confusão. Primeiro, a apologia da valentia renega a valorização da pessoa. Quando se tecem loas aos bravos entre nós há um convite ao desprendimento de si. Convocam-se os que não olham para trás se for preciso despojar a vida em nome de uma causa. Não percebo como o elogio da coragem cega se concilia com a denúncia dos kamikazes que espalham terror e sacrificam a vida, com ela levando as vidas de um punhado de inocentes. É perigoso cantar elogios aos valentes que esmagam impiedosamente os fracos, os que escolheram o lado errado. O pregão vem enfeitado com a oferenda de um sacrifício de si. Para sermos fortes, por vezes temos que tombar no altar das convicções que perseguimos. E a vida perde significado.

Há mais perplexidade: entoar o refrão é uma falácia. Sem os fracos não há mister de assinalar os afamados fortes. Para vangloriar os fortes houve que dobrar pela força os fracos. Os fracos existem. Estão inscritos na História. Ficam retratados pelas piores razões, vergados ao humilhante peso da derrota. Insistir no pregão de que ficam extirpados da História é negar uma petição de princípio. Por mais que custe aos hagiógrafos, os fortes não lutaram sozinhos. Podem os seus nomes entrar no púlpito dos que merecem ficar engalanados a ouro. Podem os fortes ser credores de lisonjas. Mas se as narrativas cantam batalhas onde o sangue jorra fácil, como se o sofrimento das vidas sacrificadas fosse apenas uma ténue vírgula na História da humanidade, essas batalhas foram encontro dos que entram no panteão dos fortes e dos que, inditosos, tombaram derrotados.

A literatura segue contra a corrente. Os historiadores e os zeladores da valentia alheia que idealizam como sua encantam-se com os que se distinguiram por sanguinários actos que vergaram os fracos a essa condição. Há escritores de agora que choramingam pelos cantos. Extasiam-se com a sua condição miserável. Fracos de espírito, fracos de estética, férteis campos de desamores, como se houvesse mister de se demitirem da felicidade. Diria que muitos encontram nas asperezas semeadas pelo caminho o lenitivo para a escrita. Eles são os fracos e fazem olímpico garbo da condição. Será a pós-modernidade nos costumes instalados. Os historiadores e os ascetas da bravura andarão confusos com a inversão de valores.

Quando leio o estilo dos coitados que expõem as suas fraquezas e se auto-denunciam no altar sacrificial de si mesmos, desconfio. Desconfio que há ali um pungente pedido de clemência alheia. Expõem a sua amargurada vida, como ela tem sido um percurso cheio de espinhos que faz margem com um rio aonde confluem as tantas lágrimas de mofina vertidas. O desnudamento é um coro de lamentos que intui a comiseração dos outros. Diria, na invenção de uma palavra, a “coitadificação” perene. Surgem como os coitadinhos que clamam, piedosamente, por um afago, por muitos afagos de quem se perder de pena com a miséria assim despida.

Não sei se estes fracos, malquistos com a fortuna, são os fortes de agora. É preciso discernimento para jurar aos olhos dos outros os caminhos ínvios por onde a vida se amotinou. Desconto a lânguida choradeira que há-de levar água ao seu moinho – quando os militantes coitados choram desamores, conquistando muitas donzelas que se apoderam de compaixão acreditando, no seu íntimo, que ganham um pedaço de céu. Isso descontado, há um sinal de contra corrente na exposição do infindável rol de desgraças que preenchem uma vida. É preciso ser forte para sacrificar a dignidade e dizer a todos, pelo crivo indelével da palavra que se emoldura em livro, quão tristes e pobres são.

Só a força de braço precisa para investir contra a maré é prova cabal de que eles podem ter sido os fracos de antanho, mas são os fortes da contemporaneidade.

27.4.07

(Ainda menos que) os cinco minutos de fama


Eu gosto de ver imagens de pomposas inaugurações de obras públicas. Quanto mais demoradas na construção, quanto mais tenham furado o orçamento estimado, quanto mais se assemelham a elefantes brancos, melhor.

Não me encerro em contradição: não alinho com os que defendem obra pública em espiral, crentes nos seus predicados para a economia nacional; não dou para o peditório da teoria económica, tão cara às esquerdas, que tece largos encómios à obra pública (diz, sempre é um estímulo ao emprego), e assobia para o ar quando chega o momento de pagar a factura. Muita desta obra pública é cara, desnecessária, atrasada. E provinciana. Outras vezes, manifesta opções duvidosas: serve para embelezar o regime, acentuando a anestesia do povo, convidado à eterna genuflexão aos visionários que a projectaram; imortaliza os governantes do momento, cujos nomes ficam emoldurados indelevelmente.

Não é por nenhuma daquelas razões que adoro ser espectador destes cerimoniais. Nem pela bênção do bispo ou do cardeal, na unção que afasta bruxedos que possam amaldiçoar a cobiçada obra pública. O que me delicia é o perfume do povo que adere em massa à cerimónia. O povo exultante e amestrado. No aplauso unânime da obra quase a ser inaugurada. Os governantes recebem o seu banho de multidão. Olham para o povo que os admira com a superior aura da autoridade com que sobem ao palanque. Há ali uma sinergia que é a pulsão genuína da democracia: um povo agradecido faz de pajem aos governantes, que aproveitam para massajar o ego tão grande enquanto desmultiplicam a retórica do serviço-público-que-é-um-sacrifício-pessoal.

E o povo faz fila para aparecer em primeiro lugar quando a fita for cortada por aquele que manda mais. O povo vai de véspera, porque quer ter a suprema felicidade de ser o primeiro a atravessar a linha que delimita a obra acabada de inaugurar. Atropela-se, na confusão de cotovelos e de impropérios que sobram com a emoção do momento. Costuma-se dizer que todos temos cinco minutos de glória. Os cinco minutos que nos retiram do anonimato – como se fosse tão importante deixar de ser, por cinco minutos que seja, uma anónima personagem no meio da multidão.

Talvez os psicólogos encontrem explicações para a fobia de ser primeiro em alguma coisa, quando ao povo é dada a oportunidade de emergir do nada em frente das câmaras da televisão e dos flashes das máquinas fotográficas. Foi assim com a Expo 98, com a Ponte Vasco da Gama, com os estádios que sorveram fortunas para acolher um campeonato europeu de futebol, com uma piscina municipal, com mais uma rotunda que regista a obra do autarca, com um túnel há tanto prometido. Como é ternurenta a imagem do microfone a passar diante do povo enquanto espera, ansioso, que a obra seja declarada aberta. E depois é vê-los numa enlouquecida correria, a ver quem vê primeiro a luz na outra extremidade do túnel. Quase todos velhinhos, que a vida se esgota e ainda não houve lugar aos merecidos cinco minutos de fama.

Hão-de ir para a sepultura reconfortados. Por uma vez na vida, protagonistas do noticiário. Falaram para milhões de espectadores. Não interessa se disseram disparate ou atropelaram a gramática. Não interessa que hajam mostrado a boca desdentada que nunca se deu bem com os dentistas. Não interessa que exalem a maior das ignorâncias. Não interessa o aprumado buço das senhoras em vozearia estridente. Nem interessa que sejam motivo de troça dos espectadores que consomem esta informação; logo dirão que é a mortal inveja que alimenta a troça. Tudo o que interessa é que tenham sido, por segundos, as pessoas mais importantes do universo. Que as câmaras tenham estado focadas só sobre eles. Por uns segundos que seja. O que desmente o teorema: afinal não temos direito aos cinco minutos que nos projectam no instantâneo estrelato.

Hão-de ir desta vida com a gratificação de terem deixado obra à prole. Algures no futuro longínquo, os netos hão-de informar os bisnetos que aquele velhinho apressado, em esforçada correria pelos corredores do sombrio túnel, é o bisavô que nunca conheceram. Saberão disso no dia em que a obra celebrar meio centenário e a imprensa resgatar do distante passado (que é hoje presente) as fotografias e as imagens do bisavô que foi, por uns segundos só, herói público.

26.4.07

E estudar, é algum mal?


Anda polémica no ar por causa da publicidade engendrada pelo governo para a iniciativa “novas oportunidades”. A campanha tenciona atrair públicos à escola para concluírem os estudos que outrora ficaram a meio. A publicidade alusiva serve-se de figuras públicas que dão o corpo a personagens que não teriam o estrelato que atingiram se não tivessem porfiado nos estudos. Carlos Queirós é tratador de relva num estádio de futebol. Judite Sousa é ardina. Pedro Abrunhosa é o funcionário do cinema que encaminha os espectadores até aos seus lugares.

Algumas virgens ofendidas protestaram contra a indignidade. Acham que há ali a desconsideração de profissões (o tratador de relva, a ardina, o arrumador do cinema). Que aquelas personagens não foram longe na vida porque decidiram arrumar os livros cedo de mais – e isso não deve ser trazido a público. Não é de estranhar que neste lugar pontuado pela fobia da igualdade haja quem fique contrariado com a campanha. Como sempre, dão o melhor para descobrir sinais de iniquidade, denunciando a coisa por ser contrária ao politicamente correcto.

Antes de ir à substância, reparo que este é um texto construtivo – finalmente! Pela primeira vez, até parece que saio em defesa deste governo. O que muito me custaria, por não ser capaz de caucionar ineptos. Impõe-se um esclarecimento que coloca as coisas no devido lugar: não há aqui defesa do governo, nem sequer aplauso à iniciativa “novas oportunidades”. Vejo na medida mais uma operação de cosmética, com a sobranceria do aprumo social que tanto atrai.

Resta saber se, daqui a uns anos (quando for chegado o momento de avaliar medidas pomposamente anunciadas, exercício que, contudo, é remetido para a agenda dos esquecimentos), a operação se saldou pelo sucesso. Se houve muitos adultos de regresso à escola. Se muitos levaram até ao final o corajoso acto de voltar a estudar, concluindo os estudos secundários. Será importante ajuizar como se concretiza o modelo: os adultos regressados à escola vão ter tratamento especial, para passarem às disciplinas com mais facilidade? É o que consta. Nada mau para quem tanto apregoa o sagrado valor da igualdade: os alunos em idade de o serem, esses ficam prejudicados porque têm que se esforçar mais para obterem aproveitamento às disciplinas. Se este é o espírito das “novas oportunidades”, parece-me um tremendo embuste. Apenas um ardil para mostrar que temos menos iliteracia, ou uma sumptuosa ilusão estatística que nos há-de retirar do vergonhoso lugar que ocupamos na escala do sucesso escolar. Como estes socialistas tanto gostam de legislar, pergunto até que ponto não seria melhor exarar decreto que atribuísse a todos os cidadãos sem habilitações o 12º ano apenas por o serem – cidadãos, e com a sorte de serem governados por iluminados socialistas.

O que me transtorna não é a operação de cosmética que tenciona sentar nos bancos da escola adultos e mesmo senescentes. Admira-me (porque teimo em ser ingénuo…) que haja ofendidos pela forma como a medida foi posta a circular. Parece-me que os ofendidos estão a analisar o problema ao contrário. Protestam contra a desvalorização das pessoas que ocupam profissões retratadas no anúncio publicitário. Argumentam: há ali um laivo de exclusão social. Incomodam-se porque os ardinas, os jardineiros, os arrumadores de cinema mergulham na frustração ao serem retratados daquela forma. Lamentavelmente, ainda ninguém se preocupou em interrogar os visados, para saber se houve melindre com a publicidade que, aos olhos dos outros, os apouca.

Quando tanta tinta escorre enaltecendo os conhecimentos, quando os mesmos que se insurgem contra aquela publicidade estão na linha da frente contra o analfabetismo e a iliteracia – considerando-as expressões de exclusão social –, como podem esboçar tantas críticas moralistas quando tudo o que se pretende é chamar de volta à escola pessoas em idade madura. Pessoas que, por vicissitudes várias ou apenas pela preguiça da adolescência, admitem agora que os estudos que não fizeram povoam um vazio que querem preencher. O desconforto da instrumentalização daquelas profissões é uma estúpida obnubilação da realidade. Elas não deixam de existir, nem que pessoas sem estudos desaparecem dos registos oficiais, se o anúncio desaparecer das televisões.

Os ofendidos críticos enganam-se na lente: deviam perceber que estudar não é maleita. Aliás, como o comprova o excelso percurso do primeiro-ministro, com o beneplácito (e o público elogio) do ministro que tutela o sector. Ah, já me esquecia, esta alusão não devia aparecer: pois já houve quem oficialmente decretasse que a polémica das habilitações académicas do primeiro-ministro é “assunto encerrado”. Cá está o paradigma do regresso aos estudos. Ponhamos os olhos no exemplo do timoneiro!

25.4.07

Valores que se banalizam: liberdade e paz


Faço parte de uma geração que não sofreu as provações ditadas pela ausência de liberdade. A minha geração só sabe o que é uma guerra pelos livros de História e pelos filmes que a romanceiam. Porventura pela distância entre a minha geração e estes valores, há uma tendência para o tempo os gastar. A acomodação dos espíritos – a liberdade e a paz parecem cimentadas – leva-nos a desprezar estes valores. A questão não pode deixar de ser colocada: perderam importância?

Compreendo que as gerações mais velhas os meçam com outra bitola. Elas foram privadas de liberdade durante os anos da ditadura. Algumas pessoas sofreram com a guerra colonial – quer os que estiveram no terreno, quer os familiares que iam rezando para que houvesse lugar a um regresso sem estropiamentos. Apesar de não estar distante o tempo do jejum de liberdade e de paz, temos uma confortável sensação de que a liberdade e a paz são estáveis, uma sólida garantia. Há sempre espaço para alucinantes especulações, sobretudo dos fanáticos das teorias da conspiração: para eles há fantasmas prontos a despertar do sarcófago onde estão sepultados. Está sempre à espreita um fantasma disposto a espetar um punhal na paz e na liberdade.

Percebo que as gerações mais velhas sejam mais sensíveis a valores que tanto custaram a conquistar. Passar os olhos pelo último século é a matéria-prima necessária para se conferir mais valor à liberdade do que à paz. Passamos ao de leve pela primeira guerra, fomos neutrais na segunda guerra, tivemos cerca de catorze anos de guerra colonial. Espasmos de guerra, em contraponto com o longo consulado de ditadura, os quarenta e oito anos de asfixia da liberdade de opinião e perseguições policiais a quem ousava dissidir. Se a passagem dos anos consolidou a estabilidade da paz, as feridas abertas pela ditadura continuam por sarar. Sobretudo entre as gerações mais velhas, que não se cansam de recordar os penosos anos da obscura ditadura.

Assim vivemos, sentimentos paradoxais. Uma divergência entre gerações. As gerações anteriores à minha perseguem a militância das liberdades. Brandem, a todo o tempo, o fantasma do totalitarismo que triunfou durante o Estado Novo. Invocam a memória: da ausência de liberdade de expressão, da tortura da polícia política, das prisões arbitrárias, dos julgamentos ditados por delito de opinião, do cerceamento das liberdades fundamentais. Devemos-lhes a liberdade de hoje? Não me custa reconhecer que são credores de um contributo inestimável, com a sua luta. O que não aceito é que se apresentem como os únicos que lutaram, desde a clandestinidade, contra a ditadura deposta há trinta e três anos. Nem menos admito que falem de cátedra quando colocam na sua boca a palavra liberdade. Para muitos destes que se perfilam como arautos da liberdade, a palavra vem envenenada quando se solta das suas bocas. No seu projecto, à deposição da ditadura seguia-se uma ditadura de sinal contrário. Um totalitarismo pelo outro, ainda e sempre atropelando as liberdades.

A minha geração está emparedada entre os mais velhos e os mais novos. Entre os que não conseguem varrer da memória o rol de iniquidades, de privações de liberdade, os que continuam activos na defesa da liberdade como valor fundamental à dignidade humana. E os mais novos, que já nasceram em liberdade e nunca souberam o que é a guerra, a não ser pelos relatos trazidos pela geografia distante. Pela experiência do contacto com as gerações mais novas, sinto que elas resvalam com facilidade para posições totalitárias, para a intolerância. Manifestam desconhecimento da ausência de liberdade, das suas consequências. Há nesses comportamentos intolerantes uma perigosa deriva de totalitarismo. Como se uma esponja obliterasse o passado recente, e o elevado preço que os antepassados pagaram pela conquista da liberdade fosse um pormenor irrelevante. O que me faz supor que não valorizam a liberdade (e o mesmo se dirá para a paz) como as gerações que dela estiveram privadas.

Há um risco para as liberdades? Olhando em redor, a imagem que emerge é a de um Estado policial que cresce a cada dia que passa. Mais e mais intrusões nas liberdades fundamentais, escoradas por imperativos de segurança ou apenas por gratuitas exibições de autoridade. Ainda que tantas vezes seja nítido que cercear as liberdades é um pretexto para ancorar totalitarismos mal disfarçados exibidos por “democratas” de fraca têmpera. Alguns, mais velhos, apenas revelam o lastro ideológico em que foram educados, num totalitarismo de sinal contrário, agora reconvertidos a ideologias que professam as liberdades. Com a complacência das gerações mais novas, que vão sendo mais numerosas com o andar do tempo, menos sensíveis às provações ditadas pela ausente liberdade - que as desconhecem.

Se há solução? Uma e só uma: educação para a cidadania, desde os bancos da escola e sem o crivo dos enviesamentos ideológicos (tão caros aos encartados da pedagogia).

24.4.07

Os assaltos deviam ser dedutíveis no IRS


A chamada “pequena criminalidade” é uma praga. Quem pode afiançar que nunca foi vítima de um assalto – na via pública (com ou sem ameaça de força física), à residência, ou no habitual vidro partido do automóvel para retirar auto-radio e outros pertences valiosos? Defrontam-se dois lados da barricada: os furiosos militaristas, descontentes com a insegurança que grassa nas cidades, reivindicando mais polícia (e mais atenta), mais justiça (e mais eficaz), penas mais duras para os pequenos meliantes que vão coleccionado registos no cadastro que não dão origem a uma temporada de acalmia por trás das grades; e os cultores da criminologia que condescendem com este tipo de crime, porque consideram que as energias das polícias e dos tribunais devem ser usadas para crimes mais graves.

Os seguidores dos condutores de táxi – fautores de teses peregrinas quando alguém é obrigado a ouvir o que têm a dizer acerca da pequena criminalidade – exageram quando preconizam mão de ferro para os intérpretes de pequenos assaltos. Argumentam com o adágio popular: “para grandes males, grandes remédios”. Descontentes com a vaga de pequena criminalidade, de como se generalizou e faz parte do quotidiano das pessoas, contrariam o rótulo usado. Uma sequência infindável de pequenos delitos é uma chaga social, no seu entender. Sendo um grande mal, fermentando a insegurança que traz um aperto do coração nas pessoas, os cultores da mão pesada defendem perseguição implacável aos pequenos delinquentes, penas duras para quem resvalar para este género de criminalidade.

Também não subscrevo a complacência dos cultores da criminologia. Há que definir prioridades no combate ao crime? É justo que existam. Alegam a escassez de meios e a necessidade de os concentrar na criminalidade violenta, na criminalidade de colarinho branco. São os crimes que atemorizam a sociedade – há que não esquecê-lo, nada mais que uma abstracção. Os adeptos da criminologia acrescentam a condescendência que os faz olhar para o lado quando a chaga da pequena criminalidade é discutida. Há sempre uma exclusão social, ou uma infância atormentada, ou um desvio de personalidade imputado à iníqua sociedade, que explicam a delinquência. Causas que explicam e legitimam a não perseguição destes crimes.

Nem de um lado da barricada, nem do outro. Acho deploráveis os instintos que comandam a reacção militarista dos primeiros. Temo que seja a porta entreaberta para outras acções violentas, desproporcionadas. Que seja o pretexto para mais Estado policial, como se já não bastasse o que nos cerca. Porém, não consigo encontrar o mais pequeno vestígio de complacência com quem usa e reitera da pequena criminalidade. Não me comovem as explicações sociológicas que visam obter o perdão para estes desgraçados da sociedade. Talvez a insensibilidade se deva à tarimba como vítima destes pequenos crimes. Seja como for, acho que tudo perde o sentido quando a vítima passa a algoz e o criminoso aparece desenhado como o santo que até a auréola carrega.

Lembrei-me de uma solução para que esta criminalidade entre nos carris do tolerável. Neste género de crimes, as investigações estão condenadas ao arquivamento. A “falta de provas” é o sintoma de que os investigadores assobiam para o lado e não se querem aborrecer com um processo que envolve umas “migalhas”. É a mania das grandezas, versão policial. Já que as preocupações sociais continuam a ditar a agenda, já que somos instruídos para ter comiseração dos excluídos que entram na senda do crime, o Estado (que somos todos nós, vítimas e algozes) devia ser sensível à retórica que prega. As autoridades não deviam padecer da enviesada análise que confere tratos de polé ao criminoso e desprotege a vítima. Que assuma as suas responsabilidades: altere as leis fiscais e permita que as vítimas de pequena criminalidade deduzam os danos causados no seu IRS.

Tudo seria detalhadamente legislado, para impedir simulações bem engendradas de crimes. Não haveria buracos da lei a contemplar a compensação de falsas vítimas. Seria imprescindível a denúncia feita na polícia (mais emprego, portanto), com inventariação exaustiva dos bens furtados e dos danos causados. Já que tanto se fala de generosidade destinada aos carenciados, já que o valor da solidariedade é proclamado de forma tão enfática, e já que o Estado (que somos todos nós) tem o condão de deixar as vítimas de assaltos na penúria por falta de compensação, que sejam os impostos recolhidos (e pagos) por todos nós a exibir a tão esperada solidariedade colectiva.

Pela parte que me toca, se soubesse da possibilidade de abater aos meus impostos os prejuízos causados por assaltos, veria nisso um acto de generosidade compulsiva premiado com um crédito fiscal. Tanta vozearia com o valor da generosidade, tanta teoria rebuscada convocando a comiseração necessária dos meliantes, de uma penada eis como se conciliavam valores aparentemente desavindos. É que já estou cansado de ser generoso com pessoas que me escolheram como seu benfeitor, sem que eu fosse tido e achado no compulsivo acto de generosidade.

23.4.07

Aspectos chocantes da vida


Os contrastes oferecem-se nas grandes metrópoles, onde a grandiloquência e a monumentalidade convivem com misérias que ali desaguam, em magotes. Todas as pedras seculares testemunham o garbo histórico, mostram o lastro civilizacional. Pedem aos turistas a homenagem que os traz em demanda das atracções marcadas nos guias de referência. São as mesmas pedras que escondem o olhar das muitas misérias que se acolhem pelos recantos da grande cidade, porque as prometidas oportunidades tardam em chegar. Promessas para levas de imigrantes que fugiram da terra natal, ou para os desenganados da vida que erram pelas ruelas, que estacionam nas praças turísticas clamando pela misericórdia das multidões que ali festejam a sua abastança.

Madrid é uma cidade assim. Exibe o selo da Espanha faustosa. Sinal da centralidade espanhola, para desgosto das nacionalidades que se acobertam num mosaico que artificialmente deu nome a Espanha. Grande metrópole, com tantos edifícios que desnudam as pedras antigas bem tratadas, selando os ares de outrora quando os ibéricos eram protagonistas do mundo. Podiam as palavras enredar-se em descrições exaustivas das maravilhas arquitectónicas e monumentais espalhadas por Madrid. Ou serem o cicerone dos olhos que se demoraram num dos muitos museus que há em Madrid. Mas os contrastes marcam a memória, com o poder do antagonismo que revela um largo hiato entre mundos tão diferentes que são vizinhos, porta com porta.

Pela alvorada, mal ainda o sol se levantou, uma fileira de sem-abrigo dorme nos corredores da estação de metro do Banco de Espanha. O ar fétido seria dominante, não fosse o quadro chocante das pessoas amontoadas no chão frio, umas deitadas dentro de um manto espesso de cobertores imundos, outras escondidas dentro de caixotes, outras, mais infaustas, mostrando os pés nus insensíveis ao frio da manhã. O ruído ocasional dos transeuntes madrugadores não desperta os sem-abrigo. Nem as pessoas que vão a caminho do aeroporto e arrastam pelo chão as barulhentas rodas das malas. Aqueles sonos seriam uma fonte incessante das vidas prometidas que o destino haveria de descompor. Ao menos, enquanto dormem, permanece o fio edulcorante do sonho portentoso. Adiam a pungente vida que espaça os dias que hão-de levar até à morte.

Na Puerta del Sol concentram-se os turistas. Um mosaico de línguas e raças que transforma o lugar num cadinho cosmopolita. Acantonam-se pedintes, angariadores de assinaturas para causas diversas, vendedores africanos especializados na contrafacção e mais pedintes que partilham as imediações da zona comercial, esperançosos na generosidade de quem passa. De repente ouço a algazarra emitida por um jovem sem braços que morde um copo de plástico onde repousam as esmolas. Salta e faz ruídos imperceptíveis, para que as pessoas em redor o vejam e se choquem com a desdita. Pareceu-me que os grunhidos eram sinal da deficiência mental que se adicionava à amputação física. Como se um mal já não fosse bastante.

A caminho do parlamento, onde ainda estão espalhados pelo chão alguns pedintes paredes meias com chineses e negros que distribuem papelinhos da publicidade a restaurantes, à venda de ouro, ou à incrustação de piercings e tatuagens, cruzei-me com uma velhinha corcunda de chapéu estendido. Uns metros mais à frente, outra velhinha esquálida jazia no chão. A primeira dobrava a corcunda proeminente, tecia um ângulo de quarenta e cinco graus que inclinava o dorso numa paralela ao chão. Ela só conseguia discernir os pés dos passeantes, enquanto sentia as moedas a tilintar no gasto chapéu que a mão encardida estendia. A outra velhinha tinha o olhar perdido no vazio e espalhava toda a fragilidade física num cantinho entre um restaurante e uma loja de roupa, à porta de uma casa devoluta. Tão franzina que se escondia num lugar esconso; diria que ocupava milímetros de um pedaço de chão insignificante. Quase tropecei nela, tão pequena era a mulher, tão frágil a sua aparência. E por quase tropeçar nela, assustado, ocorreu-me que uns instantes mais tarde de atenção teriam feito com que esbarrasse na mendiga. E ocorreu-me que o tropeção traria a desgraça, uma perna partida da velhinha, com o som dos ossos a estalar perante o meu pânico de ser tarde para voltar com o tempo atrás e evitar o tropeção.

No dia seguinte, quando lá passei, as duas velhinhas permaneciam, estóicas, à espera de generosidade. Nem a corcunda da primeira se havia inclinado, nem o olhar ausente da segunda e a sua debilidade tinham mudado. Fui acometido por um pulsar egoísta: os inditosos exemplos, aspectos chocantes da vida, são lições. Mostram como todo o pessimismo e o desconforto com as pequenas coisas que nos atormentam são prova viva da ingratidão, talvez até o desmerecimento da sorte que nos calhou. E de como é irreprimível a tentação para mergulhar numa espiral autodestrutiva, quando só as desgraças alheias o podem motivar.

20.4.07

Já não há políticos de carne e osso?


Por todo o lado, só políticos de cera. Parecem saídos do museu da Madame Tussauds. Os bonecos de cera, autómatos que obedecem a impulsos gravados pelos fazedores de imagem, debitam banalidades e encenam sinais e mais sinais. Levam as pessoas no engodo, distraídas com aparências e iludidas: desconhecem que é por baixo da epiderme estaladiça dos políticos que vem a sua têmpera.

A democracia ressente-se do ilusionismo impante. Não é possível manter a arte do engano por muito tempo, a muita gente. Ainda bem que o ser humano é racional. Ainda bem que a pessoa vai despertando da letargia em que é mergulhada pelo império dos políticos da soberba. E ainda bem que à medida que os olhos afastam a neblina se instala o divórcio entre os representados e os representantes. O preço a pagar é elevado: das extremidades emergem movimentos radicais que não escondem a repugnância pela diferença de ideias. Por vezes, é necessário recomeçar do nada.

Há quem desconfie dos políticos embalsamados que gravitam na órbita do poder. Reagem desviando o voto para os que cultivam o extremismo político. Depois acusam-se os extremistas de variadas coisas. Não é conveniente denunciar os verdadeiros culpados, os que passam pelo tempo com um sorriso dentífrico e palavras escolhidas a dedo, no discurso enfático que arrebata exaltados apoios entre os que se colam por oportunismo e os que consentem pela ausência de alternativa. Este é o estado vegetativo do regime. Não há crise económica tão aterradora como esta crise do regime que passa por nós sem dela darmos conta. É um dos efeitos da anestesia geral que nos remete para um dormente estado.

Não sei se, sinal dos tempos, as pessoas dão valor ao embrulho e não querem saber da substância. Nem sequer sei qual é a origem do problema: se os cidadãos mudaram de hábitos e isso levou à transformação dos políticos; ou se, pelo contrário, estes se insinuaram pela imagem e dobraram os hábitos das pessoas. Qualquer que seja a hipótese, há culpas terríveis a endossar aos políticos. Mesmo que tenham apenas reagido à abúlica forma de ser dos eleitores, exigia-se que os instruíssem para o contrário. Se houve acomodação da classe política, ela revela um preocupante oportunismo. Todos – eleitos e eleitores – resvalaram para o amesquinhamento da democracia.

Que é uma democracia de embuste. Escolhemos pelo voto? Decerto. Escolhemos em consciência, sem artimanhas que condicionam a escolha? Cada vez menos. O que conta é a imagem fabricada dos candidatos. A báscula oscila para aqueles que conseguem disfarçar o pacote de promessas. O que conta é que as promessas não soem a impossibilidade. Difícil é discernir entre as promessas miríficas e aquelas que são declaradamente a venda de banha da cobra. Pelo caminho, uma sórdida arte de sedução do eleitorado, convidado a escolher os candidatos por aquilo que eles mostram e não pelo que são, pelas ideias que cada vez menos ostentam.

O que vale é a imagem retocada de políticos envelhecidos que aparecem miraculosamente despidos de rugas e cabelos brancos. Ou políticos enviados para médicos que cuidam da estética facial, para que a falácia não seja desmontada com a comparação entre a fotografia e a realidade. E candidatas fabricadas pela simpatia e pela beleza, rejuvenescidas por múltiplos liftings e operações de estética facial. E o ar modernaço de primeiros-ministros, que até fazem jogging (mas só no estrangeiro, que o jogging no meio dos nativos é desaconselhável – não há que misturar o timoneiro com a maralha…). E as carradas de artificialismo de candidatos à liderança de partidos, que no afã de recuperarem o trono retocam imagem (camisas fartamente desabotoadas conferem uma imagem fresca e mais jovem) e encenam actos que soam à perfídia da falsidade, como cumprimentar o adversário num debate televisionado, ainda não tinha o programa encerrado. A ditadura da imagem vai de uma ponta à outra. Até os da extrema-esquerda, que aparentam desleixo na forma como se cuidam. Um desleixo estudado, ou alguém acredita que a desaprovação de gravatas e o ar deslavado dos curadores da extrema-esquerda não é um sinal de chamamento?

Oxalá os voluntários da política fossem gente de carne e osso, pessoas como nós, que erram e mentem e admitem que mentem, e se demitem quando a mentira ultrapassa o aceitável. Políticos que não estivessem apegados ao poder. Deviam ser obrigados a apresentar credenciais fora da política, para não termos que suportar os profissionais da política que só têm curriculum em sinecuras políticas, proporcionadas por uma paciente e proveitosa ascensão na hierarquia partidária. O que há é o seu contrário. Políticos sem espessura, sem verticalidade. Políticos catedráticos na vã arte de divulgar imagem sem que a ela venha adicionado lastro.

Nas carradas de cera que retiram a carga humana a estes políticos está uma forte razão para andar distante das mesas de voto.

19.4.07

O fanático é uma pessoa muito generosa


Ontem foi distribuído, com o Público, um livro que recebeu encómios de diversos quadrantes. Escrito por Amos Oz, um israelita desencantado com as inglórias tentativas de pacificação entre judeus e palestinianos, o livro sugere o divórcio de territórios para conter a violência congénita. Do que trata o livro não posso dar testemunho, porque não o li. Na retina ficou uma frase do autor, transcrita no editorial do jornal: “o fanático é uma das mais generosas criaturas. O fanático é um grande altruísta. A todo o momento, está mais interessado nos outros do que em si próprio. Porque a essência do fanatismo reside no desejo de obrigar os outros a mudar”.

É uma visão desassombrada – o fanático é um altruísta. Poderá chocar as mentalidades. Mas é verdade. Porque o fanático esforça-se por contagiar os outros com a sua visão da verdade. Os outros terão tido a infelicidade de estarem desavindos com a forma certa de ver, actuar, pensar, falar. É como os pastores, que parecem errar na transumância mas sabem por onde conduzir o rebanho. São penhores da confiança do rebanho que, não fosse a entrega descomprometida, andaria ao deus-dará.

Nas imagens de uma bomba deflagrada por um militante suicida que levou consigo meia dúzia de inocentes, a generosidade está lá – ainda que escondida. As emoções que protestam contra o acto grotesco levam à reprovação da violência gratuita. A conclusão está deformada por um vício de raciocínio: o bombista suicida entregou-se a uma causa, despiu-se da sua individualidade. Há acto maior de altruísmo? Podemos conceber maior generosidade do que uma pessoa abdicar de si e acomodar-se no regaço da morte em nome da causa de que se diz seguidora? Por este ângulo, todos os fundamentalismos exalam generosidade. Tanto mais que os fanáticos estarão preparados para explicar que mesmo as vítimas levadas no ensandecido acto do suicida estarão melhor se forem mergulhadas no negrume da morte do que na infâmia das ideias erradas.

É óbvio que há um cinismo podre nos interstícios do fanatismo generoso. O problema deste altruísmo é a violação da vontade dos destinatários. Que, afinal, são transformados em vítimas. Quando o produto do altruísmo é forçar a vontade de alguém, o altruísmo é um presente envenenado. Quando o altruísmo conflui na imposição de comportamentos, ou em liquidar a vida de alguém, é de falácia que falamos. Tenha este altruísmo retórico a natureza que tiver: sejam os ataques bombistas traiçoeiros que espalham morte e dor entre inocentes judeus; sejam as balas disparadas pelas armas de países que defendem a civilização ocidental, mais os seus valores intocáveis, espalhados a todo o mundo; sejam as manifestações de força bruta que torcem o braço, e a vontade, dos que são obrigados a submeter-se pela razão da força; sejam (parece-me) missionários, sacerdotes, pregadores, doutrinadores, opinadores, moralistas e outros tantos que não me ocorre identificar, que difundem ideias, crenças, valores, dogmas, éticas incontornáveis, etc.

Os fanáticos não são apenas aqueles que usam a violência física como instrumento. A palavra também é arma de arremesso que destapa a máscara que esconde fanáticos que o não parecem. Nos dias que correm, com tantos moralismos estendidos até aos umbrais dos comportamentos individuais, fervilham os fanatismos que parecem abúlicos. É a fobia ambientalista, a luta contra o tabaco, o álcool, outros vícios privados, uma infindável sequência de pequenas coisas que são o nutriente para aconselhadores encartados que discorrem, com pesporrência, a sua superioridade moral. Aos destinatários da mensagem assim aspergida, só resta soçobrar perante tamanha eloquência. Acaso exista o mínimo sinal de dissidência, carregam a cruz dos alienados do “deve ser” contemporâneo. É nestes fanatismos que cerceiam a liberdade individual, que identifico as raízes de um inditoso pensamento único que soergue, omnipresente e vigilante.

Aplico a ideia do fanatismo despido de malsãos atributos, reconciliado com o arrebatador altruísmo: apodera-se-me a tristeza de saber que mesmo as trocas de ideias aprecem inquinadas pela generosidade de fanatismos encapotados. Por isso é que exibições de desonestidade intelectual são tão frequentes; por isso é que a impaciência goteja, quando os argumentos contrários teimam e parecem levar vencimento. Porque, como sugere Amos Oz, mesmo nestes inocentes debates aparece o vício do fanatismo: o “desejo de obrigar os outros a mudar”. Não que o seja através da violência bruta, mas dos jogos de sedução retórica, da mensagem disforme, das tácticas manipuladoras que escondem os objectivos da doutrinação.

Saio desta análise destemperado: admito que nem as simples trocas de ideias merecem crédito, tão enviesada é a discussão entre os proponentes. Resta saber se fará sequer sentido opinar em sentido unilateral. Pois se até essas simples opiniões podem ser recolhidas como instrumentos de doutrinação. Talvez seja o momento de repensar os conceitos: o altruísmo é um dom recomendável?

18.4.07

Amizade colorida


Mote: “A amizade é o amor sem asas”, Lorde Byron

Ensaio a exegese da frase de Byron, uma citação que saiu há dias no almanaque. Desconheço o contexto em que a frase aparece. Por isso, pode acontecer que o ensaio exegético adultere o significado da sentença lavrada do punho do escritor inglês.

Quando leio que a amizade é o amor sem asas, a primeira coisa que me ocorre é que o sexo é o animal alado que apimenta a relação. É um grau menor na intensidade dos afectos, ao estar desprovido das asas que alcançam voos inatingíveis pela simples amizade. Se Byron estiver certo, é caso para dizer: ainda bem que a amizade é o animal assisado. Senão éramos todos bissexuais. Senão a igreja já teria desaparecido, ou ter-se-ia reconvertido à força perante as evidências da promiscuidade instalada (e aí desaparecia farto motivo de risota, por ausência do ridículo que costuma cobrir a igreja quando perora sobre os costumes dos outros).

A Byron escapam alguns aspectos que desmentem a sua asserção. Primeiro, parece que amor e amizade são compartimentos estanques. Que um exclui o outro. É mais fácil que o seja quando nutrimos amizade por alguém. Aí sim, o terreiro da amizade é sinal de que não há lugar ao amor. Aliás, há amizades que são estragadas quando uma das pessoas perturba os sentidos e ambiciona atingir o degrau acima, o degrau do amor. Quando a outra pessoa anda descompassada, veda-se o amor e sobra a amizade toldada. Mas Byron sugere que o amor vem desligado da amizade. E não é verdade que o amor mais intenso povoa a amizade? Que existe uma simbiose entre amor e amizade, que é impossível distingui-los?

Por outro lado, há as amizades coloridas. Não sei se à data em que Lorde Byron viveu, os costumes ainda não tinham incorporado o hábito das amizades coloridas – daquelas amizades que franqueiam as portas a uma relação corporal mais íntima, sem chegar ao ponto dos amantes se considerarem abraçados pelo manto diáfano do amor. A educação católica que recebemos, a juntar aos hábitos conservadores que tingem a sociedade em que vivemos, fazem da amizade colorida terreno de excepção. Os padrões educacionais orientam os comportamentos na rota da separação entre amizade e sexo. A menos que o conservadorismo seja varrido para debaixo do tapete e vingue algum pragmatismo. Aí a amizade acolhe o envolvimento dos corpos. Então Byron está enganado: também as amizades podem ter as asas que ele prescreve serem exclusivo do amor.

A sentença do escritor perde validade. Ou perde-se nos caminhos da contemporaneidade, com a alteração dos hábitos que trouxe os prazeres carnais para o domínio da amizade. A frase de Byron perde o valor de imperativo categórico. Uma vez mais, para desprazer dos que gostam de colocar tudo em compartimentos hermeticamente selados, temos que relativizar. E a relativização retira a verdade absoluta à afirmação do escritor. Se em alguns casos a amizade não vem alada, noutros ganhou o travo apimentado do sexo.

Só estou aqui para registar a falácia de Byron, possivelmente devida à alteração de costumes. Entre nós, será ainda hábito pouco enraizado. Talvez nos meios urbanos, mais entre as elites que à partida têm outra abertura de espírito, com certeza entre os mais jovens e entre aqueles que privilegiam o hedonismo. As vanguardas são os expoentes do experimentalismo, em tudo na vida. De repente ocorre-me isto pela recordação de um livro de Alçada Baptista (“Os nós e os laços”) onde a amizade colorida era retratada com pormenor. O autor é conotado com os meios católicos. Não está entre as facções mais beatas e conservadoras de costumes, mas ainda assim pertence ao meio católico, por definição pouco propenso a usos adulterados pelo pragmatismo hedonista. O que acaba por surpreender pela descrição de um imaginário urbano e intelectual, um núcleo de amigos de longa data entrados nos quarenta que cultivava com desassombro a amizade colorida. Afinal não é um exclusivo das gerações mais novas, que travam contacto com outras culturas onde o avanço dos costumes traz uma lufada de ar fresco ao quarto esconso e bafiento. Mas, e daí, a surpresa é aparente: porque o romance era protagonizado por personagens que viveram intensamente o Maio de 68. Como é sabido, no Maio de 68 (e no movimento hippy que lhe foi contemporâneo), a mudança de costumes foi radical.

Se Byron vivesse no século XXI, teria que refazer a frase que deu o mote a este texto. Eis a beleza do tempo que se sucede. Nada fica imóvel: as coisas, as pessoas, os comportamentos vão-se transformando. Não interessa ajuizar se é para melhor ou para pior. Só interessa dar conta que este é um mundo que se move.

17.4.07

O mito da passadeira vermelha


Passo ao lado da Casa da Música e vejo estendida uma longa passadeira vermelha degraus abaixo, até ao cinzelado e gélido chão. Haveria de estar marcada cerimónia de gala, a atestar pelo desembaraço da passadeira vermelha que engalanava o mirífico mastodonte que afeia a Rotunda da Boavista. Desprezo os pormenores da arquitectura, do urbanismo, das finanças da prodigalidade. Os olhos detiveram-se na passadeira vermelha, durante os mesmos segundos em que o semáforo zunia a mesma cor.

Pareciam longos, esses instantes de retenção do carro. Os olhos só fitavam a passadeira vermelha. Tão importante seria que estava protegida por uma fita proibindo o acesso, vigiada por um segurança privado que dissuadia aqueles que quisessem experimentar o solo acetinado da passadeira vermelha. Depois soube: a Casa da Música celebrava o segundo aniversário. Daí a solenidade, a condizer com a gravidade do momento em comemoração.

Porque gostamos de ornamentar momentos especiais com adereços que nutrem o simbolismo? É a passadeira vermelha, como a fatiota de gala reservada para momentos singulares, como o aformoseamento do espírito para efemérides pessoais, ou as paradas militares que enaltecem o garbo da lusitanidade, ou os curas trajados a preceito para ungir novas obras com a água benta que as diviniza. Ou os néons que excitam a vista dos comensais numa gala qualquer, dando o beneplácito ao glamour que a ocasião convoca. Antes de lá chegar, os pés dos privilegiados são massajados pela suavidade da passadeira vermelha. Diria que sem a passadeira vermelha a franquear a passagem aos protagonistas, eles sentir-se-iam órfãos da sua visibilidade. A passadeira vermelha é um arcaísmo que remete para a socialização forçada a que somos instruídos.

Será o garrido da cor que compõe a disposição dos convidados à celebração? Será um afago do ego dos emproados figurões que levitam os corpos pela passadeira vermelha? Ou o vermelho da passadeira compassado com o narcisismo das personagens mediáticas exultantes com o bruaá que os aspirantes e admiradores fazem do lado de lá dos gradeamentos, naqueles tão curtos centímetros entre a fama e o anonimato? O que será, não sei. Só a certeza que este símbolo me é indiferente. Não sei se pela desavinda condição com o carmim espalhado pelo chão, não sei se por evocar tolas figuras correndo para os braços da iconoclasta deusa da vacuidade.

A passadeira vermelha ali está, horas estendida para ser pisada pelas celebridades. A maior das humildades de um objecto inanimado. Que, contudo, embeleza a pré-cerimónia. Sem a passadeira, os convivas sentir-se-iam ultrajados no público reconhecimento de que se julgam credores. Terei encontrado o simbolismo da passadeira vermelha? Será a gratidão que os comuns dos mortais exibem perante as celebridades que se destacam da mediania, elas um farol para iludir as vidas tão cinzentas que a modorra diária compõe? O vermelho que irradia é quase incandescente, visível à vista desarmada a longas léguas de distância. Como se, no momento da entronização dos figurões, tudo se resuma àquele ponto do universo onde as pessoas inacessíveis desfilam emprestando brilho ao certame.

Vista do espaço, a passadeira vermelha é uma estrela que cintila a luz feérica dos predestinados. Vista do espaço, aquela estrela que condensa a lápide dos famosos brilha com uma intensidade que só a aglomeração de figuras célebres autoriza. Um microcosmos que escapa à gangrena que lateja em redor. Os figurões olham com desdém para o povo que os aclama. Alguns deles saberão porque o fazem: também estiveram do lado de fora, também em tempos sonharam com a ascensão que parecia apenas um sonho inatingível. O auge tinge-lhes a têmpera. Esquecem o passado onde vegetaram e glorificam a sorte que não quis ser madrasta. Mas, no fundo, neles está a mesma carne pútrida e o mesmo odor fétido que sacodem quando os admiradores chegam muito perto.

O brilho consular da passadeira é um anestésico que todos tomamos – os figurões, os que exercem a função de seus adoradores, os outros (pela formatada educação). Mas de anestésico não passa: o vermelho esconde, apenas e só, o lixo varrido sob o tapete. Das catacumbas do teatro faz-de-conta, a espuma sanada descobre o lixo amontoado. E então fica tudo desnudado, e todos os corpos são feitos da mesma matéria. Mesmo os que passeiam, de ar triunfal e tudo, nos carris da passadeira vermelha.

16.4.07

A ruralidade lusitana redefinida

De tempos em tempos, retalhos do noticiário local. Na semana passada, Ponte de Lima fez cara feia aos forasteiros descuidados com o lixo nas ruas e jardins. Ontem: Chaves levanta autos de contra-ordenação a quem fizer passear cães sem trela, ou deixar as galinhas à solta na rua, ou tiver a ousadia de furtar flores dos canteiros públicos, ou aos adolescentes que pintarem graffiti em paredes antes imaculadas. À frente do microfone, o autarca candidamente anunciou que nesta primeira fase os fiscais não vão levantar os autos de contra-ordenação. Primazia à função pedagógica. O povo que aprenda os novos hábitos da urbanidade, sob o cutelo da multa futura.

A reportagem vinha embelezada por umas imagens tão típicas do Portugal profundo: as pedras rugosas de uma aldeia transmontana eram o lastro dos galináceos que povoavam a rua, andarilhos de um lado para o outro com as suas cristas altaneiras e o cacarejar irritante. Doravante terão que ficar aprisionados, os galináceos. Dentro de currais a preceito. Como o estão porcos, cavalos e gado bovino. O sinal de mudança vem quebrar as sagradas tradições que são o substrato da portugalidade ancestral. Há nos usos animais a revelação da têmpera dos povos. Se na Índia as vacas povoam as ruas em indiferente convívio com as gentes, nas ruelas do Portugal perdido são as galinhas que pisam os terrenos da liberdade. Só falta sagrar as galinhas no mesmo altar em que os indianos colocam as vacas.

O que me inquieta mesmo é o enésimo acto de engenharia social esquadrinhado dos gabinetes de consultores que se fazem bacharéis na grande cidade e depois acampam na província. Estes engenheiros sociais dão o seu melhor no afã de exportarem hábitos urbanos para a longínqua província. O que é rural transforma-se, molda-se à modernidade com sinais urbanos. Um ditame dos novos tempos, a que velhos desterrados no campo silvestre são obrigados, em fase terminal de vida, a adaptar.

Confesso que sou apanhado num remoinho de contradições. Se, por um lado, acho lamentável que os autarcas gastem tempo precioso a congeminarem políticas repressivas dos costumes, por outro lado não há nada que me vincule ao conservadorismo da ruralidade de antanho. Essa ruralidade que começa a ser destruída traz desidentificação pessoal. Poderei arrastar a factura de rapaz citadino para me sentir desconfortável com os resíduos de ruralidade que desfilam diante dos olhos, quando de visita ao Portugal distante. A imagem das galinhas em demanda histérica pelas pedras da calçada, empestando as ruas com os seus dejectos, explica muito da minha dança descompassada com a ruralidade.

Não sei onde me hei-de colocar ao tomar conhecimento desta absurda iniciativa do município de Chaves. Deveria ficar contente. Há traços dessa ruralidade, que deprime o Portugal ainda tão preso ao atavismo, que são apagados do mapa se as contra-ordenações forem passadas a eito. Não posso concordar, contudo, com o passo mágico de engenharia social que o permita. Custa-me a aceitar que mudanças deste alcance se façam por lei. Devem ser espontâneas. Como espontâneas foram sendo transformações de hábitos das pessoas: o banho é o melhor exemplo que me recordo.

O espartilho das contradições coloca-me numa encruzilhada de onde não consigo sair. Se não me revejo na ruralidade impregnada, o vencimento desta engenharia social que asperge a província com toques mágicos de modernidade é desconfortável por destruir essa ruralidade de que não gosto. Se a moda pega, um dia destes os fiscais das câmaras remotas farão incursões nas freguesias rurais, perseguindo as velhinhas que ostentam farfalhudo buço, ou as velhinhas que teimam em trajar luto quando os maridos feneceram há longos anos, ou os piqueniques que devolvem a alegria prazenteira de fim-de-semana ao povo trabalhador, ou o hediondo folclore que liberta o espírito do povo embriagado. Como já proibiriam os garrafões de cinco litros, esse ícone da nacionalidade.

E se tudo isto vier a ser proibido, fico contristado: porque desaparecem vestígios da ruralidade em que não me revejo. Eliminados vestígios da antítese do que sou. O que me amotina, pois muito do que somos constrói-se pela desidentificação com o que não gostamos.

13.4.07

Judeus errantes?


É a força de expressão que me ocorre quando vejo na rua, aos pares, missionários de religiões minoritárias que vão de porta em porta em busca de almas para o rebanho. Há as testemunhas de Jeová e os elders (que creio serem representantes de uma igreja evangélica ou metodista, não sei ao certo).

Os seguidores de Jeová são parelhas que respeitam a igualdade de sexos: sempre um homem e uma mulher que espalham a “palavra do senhor”, na interpretação dos Jeovás, tocando às campainhas das casas que se encontram defronte dos seus olhos. Os elders são rapazes na adolescência tardia que chegam dos Estados Unidos e arranham um português esforçado, com um carregado sotaque norte-americano. Os Jeovás envergam fatiota de cerimónia. O senhor traz fato e gravata e uns sapatos confortáveis, pois são longos os quilómetros a palmilhar, são longas as horas que suportam em pé. A senhora reproduz o registo no feminino, na obrigação de trajar saia – que as senhoras devem andar sempre de saia, se bem percebo ao ver que todas as testemunhas de Jeová nunca vestem masculinas calças. As feministas têm aqui pano para mangas, denunciando uma sórdida segregação sexista.

Os elders não dispensam uma anódina gravata por cima da tradicional camisa branca. Não vestem casaco, nem sequer quando o frio invernal se apodera dos ossos. Dir-se-ia que os caminhos trilhados na aspersão da “palavra do senhor” são o aquecedor do espírito que traz a insensibilidade ao frio. No contrário de um verso cantado por Davendra Banhart (“fazia calor mas eu sentia frio”), os elders irradiam um calor interior mesmo quando as temperaturas beijam o limiar dos graus negativos. A diferença na indumentária vem com o Verão, quando as camisas perdem algum pano nas mangas e os braços de uma alvura impressionante ficam expostos ao sol inclemente.

A imagem da errância dos Jeovás e dos elders impressiona-me. E mais impressionado fico pelo ateísmo que me consome. É uma imagem que me perturba pela entrega dos missionários, que se entregam à rua e aos desconhecidos com a intenção de arregimentar fiéis para as suas igrejas. Sabem que este é um país que ainda traz o catolicismo enraizado nos costumes. Ainda que o passar dos tempos traga desmobilização em relação à igreja católica, mais visível nos grandes centros urbanos e entre a camada jovem da população, e que as leis ditem a secularização do Estado, continuamos a ser um Estado confessional. As provas estão aí, todos os dias, em todos os lugares: representantes eclesiásticos ocupam lugar de destaque nas regras protocolares do Estado; há, ininterruptamente, um bispo convocado para benzer as obras públicas que se inauguram, pois a pompa exige a bênção divina.

Diria que os Jeovás e os elders pisam terreno minado. Um sacerdócio sacrificial é o que os espera. Imagino a quantidade de portas que se batem na sua cara, as pessoas não aceitando sequer um minuto de conversa. E eles insistem, tocam à campainha de mais e mais lares. Desconheço se os sacerdotes destas igrejas esboçam objectivos que os missionários colocados nas ruas têm que cumprir – como se fossem os comerciais de uma empresa que trabalham por objectivos, ganhando à comissão pelas vendas que fazem. E desconheço se o espírito de missão dos Jeovás e elders que erram rua fora é a penitência necessária, uma espécie de provação que mostra a entrega à causa religiosa que abraçaram.

Não há nada que me alicie na mensagem bíblica dos Jeovás e dos elders – ou de qualquer outra religião. Contudo, acho notável como uns e outros se entregam à missão de sacrifício. Há ali um desprendimento que seria exemplar: os que tanto criticam o individualismo do ser humano têm nos judeus errantes – imagem que retrata os missionários que são embaixadores daquelas religiões – o protótipo do altruísmo que, houvesse mister de o estender a mais gente, seria a cura para muitos dos males que nos afectam. Fôssemos todos missionários de uma causa qualquer, houvesse vontade para nos desprendermos do comodismo individualista, e a espécie humana por fim conseguiria ilustrar um ideal de entrega de uns aos outros.

Como sou individualista empedernido, não é essa a leitura que faço do espírito de missão daqueles judeus errantes. Interessa-me ir por outros caminhos: e impressionar-me com a capacidade de penitência que revelam, na demanda em busca de novas ovelhas que venham ser apascentadas pelo seu deus. Quantos de nós teriam capacidade para esta errância?

12.4.07

Para uma anti-sociologia das claques de futebol


A cegueira clubista alimenta fidelidades caninas nas claques organizadas. Normalmente jovens, da adolescência aos que já dela saíram, ensaiam gargantas e coreografias em apoio aos atletas que envergam a camisola que dizem amar (como se um clube de futebol pudesse ser amado!). Tão organizadas e ruidosas, que açambarcam a cor e o som nos estádios de futebol. Tão organizadas e ruidosas que não hesitam em afixar tarjas onde anunciam que são a alma mater da agremiação.

Os que do conforto do sofá dissertam sobre os predicados civilizacionais do ocidente, colocando-o em contraponto com o islão fundamentalista, andam distraídos: desconhecem o futebol. Escapa-se-lhes um importante detalhe: cada vez mais o futebol move paixões, arrebata afeições irracionais (eu lá sei porque sou do Sporting…) – mais alguns ingredientes para a banalização da contemporaneidade, anestesiados que somos com o acessório, na necessária instrução para orelhas moucas e olhos vendados para a dolorosa realidade. Há fundamentalismos que nidificam debaixo dos nossos olhos, sem ser necessário censurar o islão.

Os adeptos normais, os que fogem do estigma das claques, perderam protagonismo. Não ensaiam pregões onde o linguajar se solta com languidez, os palavrões ofendem o adversário, a apologia da violência é verbo fácil. Há quem as estude, esquadrinhe teses eloquentes e elaboradas sobre a antropologia, a sociologia, a psicologia das claques. Algo me escapa neste abastardamento da ciência: desde quando um bando de energúmenos treinados no apoio primário merece as atenções da ciência?

Visto por outro ângulo, até sou capaz de entender a entrada das claques no universo da ciência. A criminologia conquistou terreno entre os estudiosos dos comportamentos de delinquência. Somos desafiados a compreender o criminoso, quase se chegando ao exagero de inculpar a vítima. Assim é mais fácil perceber que as claques sejam estudadas por cientistas sociais. Como um grupo de tratantes, que promove a negação do espírito desportivo que devia estar presente no futebol; como um ninho de patifes que cultiva amiúde a pequena criminalidade (que, em certos casos, degenera em criminalidade mais sofisticada, com direito a alcavalas que atestam a honraria de ser membro distinto de uma claque, com a impunidade em que os trastes se acham investidos), as pontes com a criminologia esboçam-se com nitidez.

Por todo o lado, o que distingue as claques são episódios de violência. Entre elas fermenta uma rivalidade intra-clubista cega e imbecil. Cada desafio com o rival é a guerra terminal onde se hão-de contar feridos e mortos, ecoar cânticos bravos na vitória e partir montras e assaltar áreas de serviço na derrota. Também promovem actividades lúdicas, de preferência antes dos jogos, para matar o tempo que falta para as emoções jogadas no relvado: aí o inimigo é a polícia, que sai dos quartéis para perturbar a função e apascentar os excessos de violência que as meninges excitadas dos energúmenos gostariam de espalhar.

Quando as claques ganham protagonismo, tudo está errado: porque o conquistam pelas piores razões, com imagens de cabeças partidas, promessas de morte ao adversário que se transfigura no inimigo mortal, uma violência incontinente. Os brandos costumes cimentam a ternurenta condescendência com a animalesca maneira de apoiar o clube da preferência. Aprendêssemos com os gregos, que tiveram a coragem de proibir todas as claques depois do enésimo episódio de violência, e o ambiente nos estádios de futebol seria despoluído. Então sim, a imagem que os promotores do futebol tentam passar, de que este é um desporto das famílias, deixava de ser uma patranha. Até lá, quem arrisca levar filhos de tenra idade para esses lugares que mais se assemelham a matadouros, com os cais raivosos que espumam fervor clubista e juram ódio de morte aos adversários?

Descontando as imagens deploráveis de toda a violência destilada pelos fanáticos, há uma que me desperta curiosidade: um chefe da banda comanda as tropas, de costas voltadas para o jogo, como se fosse o maestro que manobra os instrumentistas da alcateia. De costas voltadas para o jogo – e, normalmente, de tronco nu, mesmo no pináculo da invernia, mostrando as adiposidades que escorregam em direcção à cintura. De costas voltadas para o jogo, é que me deixa intrigado. Ou são dotados de um enorme altruísmo, preferindo orquestrar os comandados a ver o clube da afeição a triunfar ou a soçobrar; ou não gostam do desporto, e não percebo o que os motiva a entrar num estádio e a organizar as coreografias e os pregões do mais sórdido primarismo; ou há, apenas, muito ensandecimento no ar. Suponho que a terceira hipótese leva vencimento.

11.4.07

Afinal os funcionários públicos são discriminados


Não é a discriminação positiva que tanto favorece os funcionários públicos, habituados a regalias que são uma miragem para os trabalhadores do sector privado. Não são os “direitos adquiridos” que desoneram os funcionários públicos da responsabilidade que os demais trabalhadores têm. Não vou sequer mencionar a ideia que o emprego na administração pública é para toda a vida (a menos que o vínculo seja rompido pelo trabalhador), quando os outros não têm acesso a essa garantia. Nem vou perder tempo aludindo o poder desmesurado dos sindicatos da função pública.

Os trabalhadores da função pública também sofrem de uma intolerável discriminação negativa. A menos que a legislação tenha mudado, não podem gastar dinheiro em casinos. Em rigor, apenas lhes é vedado o acesso à sala onde as apostas mexem com somas avultadas – a roleta e quejandos. Os funcionários públicos são admitidos às slot machines, porventura porque o legislador investigou a fundo e descobriu que aí não se torra tanto dinheiro como na sala onde as apostas sobem a altas paradas.

Esta é uma intolerável discriminação que veda uma liberdade fundamental de qualquer cidadão (a menos que o vício do jogo seja doentio e a prodigalidade assustadora que um tribunal impeça o jogador compulsivo de frequentar casinos). Ao que sei, a proibição que atinge funcionários públicos tem esta motivação: como os seus salários têm origem no erário público, é ilegítimo que os dinheiros dos contribuintes acabem por morrer na mesa verde de um casino. Como se fosse necessário o sempre paternalista Estado nos lembrar que há jogos de pecado, no intrigante e paradoxal comportamento de quem tolera o jogo (pelos fartos proventos, via impostos, que os casinos pagam) mas, ao mesmo tempo, censura a sua existência.

Para os moralistas encartados, a medida justifica-se. Se os funcionários públicos são pagos através do dinheiro furtado aos contribuintes, que esses proventos não sejam gastos no vício sórdido do jogo. Até porque – continuando na ladainha moralista – o vício impregnado pode toldar o discernimento dos funcionários públicos. A medida tenciona impedir distracções que prejudicam o desempenho. Seria um duplo desperdício: consumindo inutilmente parte dos impostos que revertem a favor dos salários dos funcionários públicos, e tendo ao serviço gente cercada pelo vício do jogo e pouco interessada em produzir.

Por mais atraentes que sejam os argumentos dos moralistas que aceitam a proibição, acho-a injusta. Primeiro, porque é uma proibição, com a conotação negativa que todas as proibições têm. Continuamos presos às proibições, numa sociedade que se impõe em vez de tolerar. Um exemplo sintomático: no sítio onde moro vai ser discutido o regulamento do condomínio. Só o artigo que enumera os comportamentos proibidos aos condóminos estende-se da alínea a) à alínea x)! Em segundo lugar, custa-me a aceitar como se pode determinar por lei onde os funcionários públicos não podem gastar o seu salário. Cá está a discriminação negativa que os coloca num estatuto desconfortável. Os outros trabalhadores podem gastar o dinheiro onde lhes apetecer. Os funcionários públicos convivem com este estrangulamento da sua vontade.

Que interessa que os funcionários públicos sejam remunerados através dos impostos que pagamos? O salário é a compensação devida pelo seu trabalho. O salário dos funcionários públicos é diferente dos demais porque tem origem nos impostos? Se assim é, ser funcionário público é muito desconfortável. Afinal faz sentido o activismo sindical que tanto protege as regalias dos trabalhadores da administração pública. Por outro lado, lamento que esta vigilância paternalista se fique pela metade. Talvez fosse mais importante vigiar a produtividade dos funcionários públicos. Responsabilizá-los pelo que fazem, pela qualidade do que fazem, penalizá-los pelo que não fazem, ou pelo que não chegam a fazer em tempo útil. Como de costume, o tiro acerta no alvo errado: não é o destino dos proventos que interessa, mas o desempenho dos funcionários públicos.

Uma última perplexidade: esta proibição é eficaz? Descontando o exercício da consciência individual (matéria muito volátil…), como se fiscalizam os funcionários públicos tentados pela ganância do dinheiro fácil que, em teoria, o jogo proporciona? Os funcionários públicos ostentam uma marca invisível detectada quando franqueiam as portas do casino, accionado um alarme que leva à sua detenção? Há leis, mais as suas proibições que fermentam a adorada autoridade pública, que pertencem ao domínio do patético.

10.4.07

Do turismo asseadinho


Como está na ordem do dia o cartaz xenófobo da malta da extrema-direita, com um simpático convite para os estrangeiros embarcarem no próximo voo de regresso aos países de origem, nada melhor que uma versão suavizada do mesmo tipo de terrorismo intelectual. O município de Ponte de Lima colocou quatro outdoors de grandes dimensões nas entradas da povoação, convidando os turistas sem sensibilidade ambiental a não pararem na vila minhota para não a emporcalharem.

Que é como quem diz, turistas porcos não são bem-vindos. Que façam de Ponte de Lima ponto de passagem, não ponto de paragem. Que o lixo causado pelo desleixo e pela inconsciência seja largado noutras localidades, que o problema já não é da povoação limiana. Há anos fabricou-se o estereótipo do turista de pé descalço. Agora que o Maio de 68 não é mais que uma recordação que afaga folclores reminiscentes da rebeldia borbulhante, e que os outrora turistas de pé descalço se renderam aos prazeres consumistas da burguesia, eis que surge uma nova categoria de turista de ralé: o turista badalhoco.

Parece-me que o cartaz reproduz o mesmo registo discriminatório dos rapazes da extrema-direita. Onde uns se despedem, sem comoção nem saudade, dos imigrantes que tresloucam a grandiloquente portugalidade, outros escorraçam os turistas que espalham lixo pelas ruas e jardins locais. Em ambos os cartazes, a mensagem é de exclusão. Divorcia-se dos cânones politicamente correctos que imperam nos dias que correm – os cânones da inclusão. Daniel Campelo pôs-se a jeito da comparação com a extrema-direita. E se o cartaz destes precedeu o da autarquia limiana numa semana, mais incompreensível é a teimosia deste outdoor que adverte, preto no branco, que os turistas sem hábitos de higiene pública melhor é não visitarem Ponte de Lima.

Convém escutar o autarca em discurso directo: “é um convite para as pessoas que não são limpas, e que não respeitam as regras ambientais, se irem embora. É um apelo para que quem não tem hábitos de higiene e limpeza urbana não venha a Ponte de Lima, porque aqui não são bem-vindas”. Pergunta imprescindível: estarão os militantes do ambientalismo ao lado de Daniel Campelo? Será Ponte de Lima um santuário para os ecologistas? Estamos habituados a que os zelosos ambientalistas resvalem para o fundamentalismo espúrio, que não hesitam em exibir superioridade cívica de quem ministra lições aos demais. Até agora as associações ambientalistas mantêm-se caladas, o que me causa espanto. Ou talvez não: para quem desconfiava que as acusações de enviesamento político destas associações eram injustas, porventura este silêncio seja comprometedor.

Quem sabe se Daniel Campelo não recebeu inspiração no Verdocas que, todos os dias, dá lição de educação ambiental no canal Panda. Embevecido pela sapiência do Verdocas, o edil descobriu o ambientalista que vivia adormecido dentro de si. Só se lamenta que o presidente da câmara de Ponte de Lima seja míope ao ponto de julgar que os que emporcalham as ruas da vila são os forasteiros. Decerto os habitantes de Ponte de Lima são um escol entre a população nacional, com níveis de instrução ambiental muito acima da média. Daniel Campelo devia perceber que as romarias que o povo minhoto tanto gosta são um altar-mor do lixo espalhado pelo chão. Que os piqueniques, tão enfaticamente festejados pelo povo sequioso de lúdicos momentos partilhados com as formigas, deixam um rasto de lixo pelas matas e jardins. Os forasteiros não têm o exclusivo da imundície. Que não venha dizer que a campanha não alimenta “nenhuma discriminação racial, religiosa ou política”. É bem pior que isso: é xenofobia regional, um umbiguismo incompreensível, como se os outros (os que não vivem em Ponte de Lima) fossem obrigados a mostrar passaporte para franquear as portas que dão entrada na vila. O feudalismo vive aprisionado nas mentes de alguns.

Para o final sobra uma interrogação: como se enxotam os visitantes indesejados que semearem lixo nas ruas de Ponte de Lima? Estará prevista uma brigada de costumes, de olho vivo nos forasteiros que prevaricarem? Passam multa? Afinarão o bastão? Ou far-se-á um cadastro ambiental, com dados inseridos no famoso cartão único, para facilitar o controlo dos visitantes que são bem-vindos e dos outros, aqueles que farão melhor em ladear Ponte de Lima?

9.4.07

À base de força bruta: a razão da força e a extrema-direita


Mais uma polémica envolvendo a extrema-direita: o partido nacional renovador (PNR) afixou um outdoor de generosas dimensões com dizeres xenófobos, convidando os imigrantes a regressarem aos países de origem.

Algumas observações antes de me alongar no que verdadeiramente interessa. Primeira observação: intriga-me como há democratas da nossa praça que espumam raiva de cada vez que a extrema-direita sai da toca. Não desce o democrata ao mesmo nível da extrema-direita quando lhe quer negar liberdade de expressão? Fazendo o mesmo jogo, como se distingue dela? Em segundo lugar, não percebem os guardiães da democracia que tanto burburinho acaba por dar uma visibilidade à extrema-direita que de outro modo não teria? As lições de outros países europeus parecem esquecidas: a extrema-direita ganhou clientela eleitoral como reacção espontânea contra os vícios da democracia, um dos quais é o ostracismo a que é votada.

Terceira observação: é deplorável a mensagem afixada no outdoor? É. Ainda há dias li uma notícia informando que os imigrantes representam 7% do PIB nacional. Há estudos científicos que provam que o crescimento económico futuro dos países europeus depende da renovação populacional conseguida à custa da entrada anual de alguns milhares de imigrantes. Sem esquecer a tradição portuguesa de multiculturalidade, impregnada na história que os nacionalistas tanto prezam e aclamam. Contudo, quem lhes pode negar o direito de exprimirem a opinião afixada no cartaz? Ninguém. Em quarto lugar, os Gato Fedorento têm direito a parodiar o cartaz, como o fizeram, emparelhando um outdoor que é todo o contrário do cartaz do PNR (descontando o facto de ter sido colocado sem autorização da Câmara de Lisboa).

É aqui que quero chegar – às consequências do humor dos Gato Fedorento. Em fóruns ligados à extrema-direita, não demoraram ameaças à integridade física dos humoristas. Eis a extrema-direita no seu esplendor: a força bruta é a razão que consegue vindicar. Quando alguém mostra opiniões diferentes das suas, e tem a ousadia de o fazer com a irresistível arma do humor, a forma de arrumar o assunto é pela força do murro. Acredito que este pessoal da extrema-direita não esteja preocupado com a imagem. Nisso são a antítese dos profissionais que dominam a paisagem política. São fiéis aos seus princípios, por mais execráveis que apareçam aos olhos da maioria da sociedade. A extrema-direita não se importa de vomitar dislates que voltam a maioria das pessoas contra ela. Nisto são coerentes e transparentes.

Acho detestável qualquer manifestação de violência. Quando me chegam ao conhecimento estas exibições de força animalesca da extrema-direita apetece cultivar, por um momento que seja, a resposta do tabefe. Repito: não é pela força do braço que as divergências se resolvem. Mas já que esta gente se afadiga em resolver altercações pela irracionalidade da violência, porque não chamá-los a terreiro e, um a um, mostrar que não são campeões do wrestling político. Com condições à partida: os valentões não poderiam actuar em matilha, como é costume. É que são tão valentes, tão valentes, que a força que se dizem dispostos a usar destila a desproporção habitual: esbofeteiam indefesas pessoas, atacando-as em grupo, onde a razão da força melhor faz ouvir o seu cântico desaustinado. Quando dezenas agridem um indefeso, é fácil ser corajoso. Teriam que vir sozinhos. E só poderiam usar a força do braço, deixando em casa o arsenal de armas que orgulhosamente ostentam.

Concedo, há aqui um vício de raciocínio: quem se entregasse ao jogo de violência cultivado pela extrema-direita estaria a desviar-se da racionalidade da discussão, onde os argumentos são trocados sem apelo a meios violentos. Seria entrar na arena empestada que os truculentos apaniguados da extrema-direita gostam de pisar. A recusa da violência gratuita e estúpida acabaria sempre por vingar. Todavia, às vezes apetece falar a mesma linguagem dos violentos, pelo gosto de os colocar no sítio.

Intriga-me como certos sectores da direita lusitana condescendem com esta extrema-direita saudosista dos tempos salazaristas que ainda são a razão próxima da pequenez que nos sufoca. Denunciam o totalitarismo dos comunistas e da esquerda caviar. Têm razão. Mas perdem-na logo a seguir quando exsudam mal amanhados argumentos que tentam reabilitar a ditadura do Estado Novo. No fundo, não se distinguem da extrema-esquerda totalitária nem da extrema-direita que merece a sua condescendência. Eu não admito os atropelos às liberdades de nenhuma ditadura. Nem a linguagem de violência que funciona como arma para cimentar a razão – uma razão da força, que se distancia da força da razão que vem do confronto apaixonado das ideais.

6.4.07

A mentira e a política


(Retirado de http://opusfryting.blogspot.com/2007/04/pode-ser-que-algum-do-gabinete-do.html)

O que aconteceria a qualquer um de nós, comuns mortais, se alguém descobrisse que tínhamos aldrabado as qualificações académicas? Qual seria a penalização para a mentira? A resposta é auto-evidente.

Os últimos tempos têm sido conturbados para o primeiro-ministro. Teve o azar da universidade onde aparentemente se licenciou estar envolvida em lamentáveis acontecimentos (que já foram matéria-prima para manobras de desonestidade intelectual de sacerdotes bem pensantes, que confundiram a árvore com a floresta num conveniente sentenciamento de todas as universidades privadas). O “Eng.” Sócrates foi vítima colateral das trapalhadas da Universidade Independente. Por entre ecos distantes que levantavam suspeitas de como obteve a licenciatura – até certo ponto, não passavam de mais uma tentativa para descredibilizar a providencial figura – o tema ganhou visibilidade quando o Público se empenhou numa investigação que trouxe o assunto para a arena mediática. Há muitas coisas estranhas por explicar. O silêncio do primeiro-ministro apenas alimenta as suspeitas. Ao que se sabe, o silêncio tem sido táctico: o próprio (e os assessores) tem-se desdobrado em telefonemas para as redacções de jornais, rádios e televisões, tentando condicionar a liberdade de informação. A táctica do costume: depois do burburinho, deixar assentar a poeira e confiar na curta memória do povo.

Confesso que estou longe da imparcialidade para fazer a análise da polémica. Embirro com o “Eng.” Sócrates. Tenho-o como um embuste, dos maiores que a história da democracia recente forjou. Com agravantes: autoritarismo mesclado com arrogância; abuso do poder que a inditosa maioria absoluta lhe confere; especialização na arte do ilusionismo comunicacional, com pomposos eventos que propagandeiam iniciativas que são sempre fáceis de anunciar, sem nunca haver o cuidado de avaliar resultados; um preocupante culto da personalidade, aparecendo o primeiro-ministro como a personalidade sebastiânica que há-de retirar do lodaçal em que ineptos governos anteriores nos afundaram.

Continuo na advertência: a antipatia pessoal e o facto de não me rever no “projecto de governação” condicionam a análise do tema. Porém, há certos aspectos que não consigo deixar de sublinhar. Primeiro, e rumando contra a maré, não acho que a ausência de qualificações académicas seja desprezível para pertencer ao governo. Não acredito na “escola da vida”, tão popularizada nos dias que correm. Aliás, o percurso do “Eng.” Sócrates é sintomático disso mesmo. Feito na escola partidária, subindo na escala do partido até ao estrelato ministerial, houve a necessidade de compor o perfil marcando encontro com o canudo universitário. É paradoxal esta terra: tanto temos luminárias que desdenham do canudo universitário, exaltando a “escola da vida”, como logo a seguir se desfazem em reverenciais genuflexões a doutores e engenheiros. Estamos algures num limbo, fermentando uma crise de identidade.

Segundo, não colhem os argumentos de certas virgens ofendidas que protestam contra a intromissão na vida pessoal do primeiro-ministro. O primeiro-ministro, por muito que lhe custe a aceitar a ideia, é um entre iguais. Não são os socialistas que se autoproclamam campeões do igualitarismo? Espera-se que não cavem o cadafalso da incoerência, ao preconizarem uma coisa na teoria que depois não é seguida na prática. Convém esclarecer que as suspeitas sobre as qualificações do “Eng.” Sócrates mostram agora todos os seus fundamentos. Não é por ser primeiro-ministro que as investigações que vasculham o passado académico da personagem devem ser cerceadas. Antes pelo contrário: sempre ouvi dizer que os bons exemplos partem de cima. Daí uma especial exigência no apuramento da verdade.

Em terceiro lugar, há que dar resposta à seguinte interrogação: se este fosse um país amadurecido democraticamente, o que teria acontecido ao primeiro-ministro quando soaram as suspeitas fundadas de irregularidades na sua licenciatura? Demissão. Seria o próprio a pedi-la, houvesse o mínimo de pudor. É tão mentiroso o que mente com todos os dentes como o outro que omite a verdade. A ânsia de um canudo universitário terá levado o “Eng.” Sócrates a fazer-se engenheiro de meia-tigela. Que tenha omitido o facto e, mais grave, alterado a verdade forjando o curriculum, é o que resta da história como inaceitável.

Já sabemos que a política é a arte da mentira. Que os políticos se especializam em promessas vãs, com o acrescento de placidamente negarem o que foi dito no passado. Mas há um limite para tudo. Neste episódio, o “Eng.” Sócrates passou dos limites, atendendo ao cargo que ocupa. Como podemos confiar num mentiroso compulsivo? Como podemos entregar os nossos destinos nas mãos de um primeiro-ministro que surge aos olhos do público como alguém que não olha a meios para atingir os fins? Assentemos os pés no chão: continuaremos a levar com o “Eng.” Sócrates. O apego ao poder, um projecto pessoal de poder e a tradicional magnanimidade com os socialistas hão-de compor o retrato em que o “Eng.” Sócrates ficou tão mal. E assim continuaremos a ser um país pequenino, preso às saias da menoridade democrática.

5.4.07

On the Hype (7) - I'm From Barcelona, "We're From Barcelona"

As pazes com o corpo


Não estou a pensar nas soluções artificiais que corrigem narizes excessivos ou acrescentam umas bolas de silicone a peitos minguados. Nem sequer àqueles sinais corporais de nascença, que desfeiam o corpo mas são incorrigíveis – um sinal negro na face, uma boca grande, os dedos dos pés que negam a estética. Há lugares do corpo que se prestam aos cuidados, da alimentação e do exercício físico. Confesso a minha obsessão: a barriga.

Já carreguei uma pança proeminente, nos tempos em que havia o desleixo do exercício físico e um animalesco descuido com a boca, mais na comida e não tanto na bebida. Nesses tempos não posso dizer que fosse desmazelado com o aspecto exterior. Fazia os possíveis por esconder a adiposa barriga que me acompanhava para todo o lado, pois nela não havia orgulho. A preguiça do corpo e a gula aguçada falavam mais alto quando me olhava ao espelho e acenava a cabeça, em tom de auto-reprovação, pela saliência que o reflexo mostrava quando me punha de perfil. Até que me cansei de carregar a pança e tratei de a emagrecer. O rescaldo foi nítido: os excessos adiposos quase foram banidos e conquistei uma dependência do exercício físico que ainda não percebi se é salutar ou, como qualquer dependência, viciante.

Há uma primeira interrogação: adelgaçamos o corpo, esmeramos a estética no que pode ser transformado pelo esforço físico, e fazemo-lo para comprazimento pessoal ou para agrado alheio? Eis uma nótula de narcisista egoísmo: faço-o para me sentir bem comigo mesmo, quando os olhos não resistem à tentação de espreitar o que o espelho mostra à saída do banho matinal. Sei que há quem o faça para satisfazer demandas de outrem. Quer da pessoa que partilha os momentos mais íntimos, quer das ainda anónimas pessoas que hão-de cair no regaço após apaixonadas conquistas ou devaneios momentâneos. Desconto esta possibilidade no esforço de apaziguamento com o corpo. Concedo, num resvalo lírico: o corpo não é vital para o pulsar do amor. É importante, mas falta um pequeno nada para chegar a ser vital.

Daí que a insistência no cuidado corporal entre no domínio do pessoal. Apenas uma exigência íntima, para que o corpo não seja uma fonte de mau estar interior. Poderá haver contradição, pois há pouco afirmei que o corpo não é vital para o pulsar do amor. Os afectos conquistam-se pela substância do ser, não tanto por aquilo em que ele vem embrulhado. Diferente é o olhar que temos de nós mesmos, quando fitamos o espelho. Imagino que flácidos corpos se transcendam na necessidade de conviver em paz com excessos adiposos. Quem o faça está a mostrar, por outros padrões estéticos, que vive pacificado com o seu corpo. Não interessa se é uma falácia, ou genuíno sentir. De uma forma ou de outra (aceitando a adiposidade, ou vivendo em conflito interior por causa dela), os corpos que temos não são desprezíveis.

Depois emerge uma segunda pergunta: cultivamos o exercício físico pela estética corporal ou pela terapia da saúde? Há algo de sacrificial quando o corpo se entrega ao exercício físico. Apetece glosar o filósofo grego Juvenal: “é preciso castigar o corpo para conhecer a alma”. Descontado o excesso da punição física, o exercício físico contém algo de purificador. Facilita a exegese do ser. Quando o exercício se torna rotineiro, e a fase inicial de sacrifício é ultrapassada, há nele a depuração do interior: passamos a conhecer os limites do corpo e é mais fácil, durante o exercício, ordenar as ideias. Sem contar com o efeito terapêutico, que previne maleitas modernas e prolonga a esperança de vida. Se o corpo se adelgaça e contenta os padrões estéticos, trata-se de um efeito colateral.

Hoje sinto-me como um drogado que confessa estar agarrado à droga da sua predilecção: só falta trazer comigo uma fita métrica para anotar os centímetros que a cintura mede. Preocupa-me a obsessão. Ponho-me de perfil e olho para o espelho em busca de uma curva mais saliente que escorrega dos músculos abdominais. A certa altura, dou comigo a negar a teoria. E o exercício físico, na sua viciante dependência, começa a ser um instrumento para a harmonia corporal. Se calhar devo ser mais asceta e cultivar os prazeres do espírito.

4.4.07

Moralismo de sacristia


Agora que já assentou a poeira do referendo ao aborto, que o distanciamento temporal fez repousar a exaltação emotiva, parece extemporâneo regressar ao tema. Ainda me chegam ecos da tempestade que varreu a paisagem. Em boa verdade, continuo a manifestar um profundo desinteresse sobre o tema, convencido que estou que é do domínio da consciência individual. Logo, matéria não referendável ou sequer passível de discussão pelos outros quando o que está em causa é uma decisão individual.

Alguns ecos só me chegaram tardiamente, em conversas com amigos. Há dias soube que alguém terá dito, numa roda de amigos, que o “não” no referendo se impunha porque o seu contrário iria permitir que as pessoas andassem por aí a fornicar à vontade. Os termos terão sido mais brejeiros, o que não abona aos predicados de rectidão moral e linguística da pessoa em causa, tão devota e empenhada em convencer os outros que a moral católica cauciona intromissões no alheio.

Que dizer perante este argumento? Para começar, o que está ali dito é um não argumento, um disparate pegado que mostra a desorientação porventura causada pela adivinhação do resultado que viria a acontecer. Durante as longas semanas que dividiram as pessoas entre os partidários e os adversários da legalização do aborto até às dez semanas, foram variadas as manifestações de tontice, com ideias patéticas em sustentação de ambos os lados da barricada. O auge terá sido atingido com este arremedo de argumento que vigia a sexualidade alheia. Onde a moral católica tributária do fundamentalismo da Opus Dei se confunde com a mais profunda imbecilidade.

O que me atordoa é alguém que não tem apenas a quarta classe poder vociferar semelhante dislate. Há alturas em que a racionalidade de uma formação superior é aniquilada pelas algemas da fé, pelas diligências da alma que aprisiona os crentes à canina fidelidade aos dogmas católicos. Pelo meio, há quem se espalhe ao comprido com argumentos que nem um espelho cristalino permitiria reflectir a idiotia que encerram. Cansa-me o convencimento da igreja, e dos seus apóstolos que se voluntariam para o sacerdócio da causa, de que pode interferir na consciência individual. O pecado é dos piores legados da civilização judaico-cristã. Uma masmorra que remete o livre arbítrio para o medo, condiciona a vontade, faz das pessoas vãs marionetas nas mãos de uma qualquer entidade divina.

Àquela pessoa que quis votar contra a legalização do aborto até às dez semanas talvez não ocorra que teve liberdade para o fazer. Como aos seus oponentes foi dado o direito de exprimirem opinião diferente. Não lhe terá ocorrido que ao dizer o que disse apareceu no filme como a castradora personagem que não hesita em vasculhar a intimidade alheia, ciente que pode sentenciar o coito dos outros. Se alguma vez tivesse ouvido semelhantes palavras numa discussão sobre o tema (de que na altura fugi a sete pés, pela irracionalidade que campeou), teria feito duas perguntas à pessoa em causa: “o que tens a ver com o sexo dos outros? E os outros, têm alguma coisa a dizer sobre a tua sexualidade?”

Não há libertinagem que possa ser censurada pela igreja ou pelos seus apaniguados. Porque quem se entrega à promiscuidade deve apenas prestar contas à sua consciência, sem ninguém ter direito a ditar sentenças. O que escapa a estes moralistas de sacristia é o perigo dos seus alvitres na vida alheia: põem-se a jeito para a sua vida ser devassada pelos outros. E como não há bom telhado de vidro que resista às pedras que sobre ele tombam, o recato seria bom conselheiro para não olharem com tanto zelo para a vida alheia. A sanha do pecado, mais a vigilância instalada que faz as delícias eclesiásticas, hão-de continuar a ser as forças que castram a individualidade do ser.

Já o tinha admitido num texto anterior: toda a celeuma do referendo passou-me ao lado, por metódico abstencionismo porque não encontro o direito de interferir em decisões que só aos outros dizem respeito. Se não estivesse persuadido da necessária abstenção e tivesse ouvido este argumento entontecido dias antes do referendo, quase me convencia a votar “sim”. Ele há ideias que são tiros no pé dos seus autores. Enternece-me o auto-convencimento da militância destas pessoas. Têm direito à militância, como qualquer militância, sublinhe-se. Continuo a achar enternecedor ver como essas pessoas se acham convencidas da persuasão dos seus argumentos, sem discernimento para a introspecção que permita descobrir como patéticas são as palavras ditas.

3.4.07

Quando cortar o cabelo é um suplício


Já muito se escreveu sobre a retórica assustadora dos taxistas. Páginas e páginas de crónicas de costumes descreveram o discurso violento e ignaro dos condutores de táxis. Os profissionais do ramo entraram para o imaginário colectivo como pessoas pouco recomendáveis, de quem convém fugir para evitar indisposições mentais. Como não ando de táxi, não posso testemunhar a insanidade da classe. Tenho alguém que os substitui com distinção: os cabeleireiros.

(Hesito: hei-de escrever “cabeleireiro” ou “barbeiro”? Nos dias que correm abundam os cabeleireiros unisexo. Na clientela, homens e mulheres convivem sem os preconceitos de antanho, quando era costume separar os homens para os barbeiros e as mulheres para os cabeleireiros. Agora, os cabeleireiros também acolhem clientela masculina – ela mesma desprendida dos preconceitos do passado, pois entrar num estabelecimento destes era exclusivo do sexo feminino. Outro sinal dos tempos, nos cabeleireiros também trabalham profissionais do sexo masculino. Que se dão a conhecer como cabeleireiros quando são inquiridos acerca da profissão. Quando o cabelo abunda e há que o cortar, hoje digo que vou ao cabeleireiro.)

Já há vários anos que abandonei os tradicionais barbeiros, onde a entrada era permitida apenas a varões. Deixei-me desses locais que ainda perseguem uma luz de ancestralidade. Perdi o contacto com as cadeiras gastas, as mãos cansadas dos artífices à beira da reforma, as navalhas com décadas que aparam suíças e extremidades capilares. Comecei a frequentar as cadeias de franchising onde também se corta o cabelo a homens. Não senti saudades da atmosfera máscula que habitava os barbeiros artesanais. Nem as conversas de futebol, com a exaltação típica de quem abraça a clubite. O que mais me atraiu na ideia de mudar de hábitos e frequentar cabeleireiros unisexo foi perder o rasto aos fanáticos barbeiros que rivalizavam, no meu imaginário, com os taxistas minuciosamente descritos nas crónicas de costumes.

Foi uma surpresa, o cabelo cortado por cabeleireiras. Pelo silêncio durante a função. Não estava habituado. Dantes era brindado com a conversa metida pelos barbeiros. Tinha que suportar a pesporrência e a verborreia de quem se julgava um catedrático do mundo. Saltava de estabelecimento em estabelecimento e o registo era invariável. Sempre os mesmos inteligentes, com opinião para tudo. Senhores das suas certezas, ditas com uma convicção assustadora. Ali não havia lugar à dissidência de opinião, não fosse a tesoura escorregar com o ânimo exaltado do barbeiro e ferir-me. Com a mudança de hábitos, um silêncio retemperador massajava os tecidos capilares, nas mãos dóceis das cabeleireiras. O meu bem-estar aumentava na exacta medida da ausência de homens a aparar as melenas excessivas.

Certo dia, calhou-me em sorte um cabeleireiro masculino. Lá regressou o velho hábito de meter conversa sobre os temas mais banais, com as opiniões triviais, lugares-comuns cansativos. E a obrigação de responder, para que a função não caísse num monólogo que me demitiria de um dever de cortesia – o de manter o diálogo. A tudo isto acresce o estereótipo que perpassou os sentidos: nos estabelecimentos onde convivem homens e mulheres, os cabeleireiros aparentam homossexualidade. Nada contra. Apenas o incómodo de me sentir olhado de forma diferente por alguém que trata do meu cabelo e que exibe tiques que fermentam o estereotipo.

Mudei de local. Das primeiras vezes, uma extremosa cabeleireira que tratava o cabelo com mãos de fada. Fazia-o num silêncio que tanto agradecia. A presença de uma cabeleireira, para mais com figura agradável, é motivo suficiente para que o ritual de cortar o cabelo deixe de ser um suplício, como o era outrora. Após meia dúzia de deslocações ao lugar do costume, sempre atendido pela mesma cabeleireira, com o mesmo emudecimento plácido, a rotação de funcionários do franchising fez calhar em sorte um cabeleireiro. Falador, demasiado falador. Intrigantemente assustador. Às vezes diz coisas num tom de voz quase imperceptível e pergunta-me se concordo. Como não consigo assinar cheques em branco, peço para repetir. O que diz então parece vagamente parecido com o que consegui discernir antes. Também tem opiniões vincadas, certezas inabaláveis, e perora sobre temas que lhe ocorre comentar. Acho que estes cabeleireiros vêm Marcelo Rebelo de Sousa a mais.

Depois de ter levado com dose repetida, está lavrada a sentença: há que mudar de lugar onde corto o cabelo. Para não ter que regressar ao passado, quando adiava por uma semana e outra mais o desbaste das abundâncias capilares. Era no tempo em que cortar o cabelo era um suplício. E como é obrigatório fugir do passado incómodo...