14.3.07

Um anúncio da Vodafone explicado às criancinhas


Amanhece – ou, talvez seja início de tarde, depois de uma noite que se prolongou madrugada dentro. O rapaz acorda, estremunhado. Os olhos fixam-se no tecto, onde está um soutien pendurado no candeeiro. Cai em si. Naquele instante começa a perceber que não foi um sonho. O que a alvorada lhe revelou como um sonho afinal tinha sido real. Meio a medo, não fosse a manhã brumosa que passava diante dos seus olhos desmenti-lo (confirmando a tese do sonho), olhou à direita: estava deitada uma escultural mulher mergulhada num sono profundo. Olhou à esquerda: outra mulher esboçava o mesmo ar de satisfação misturado com o sono apaziguador. Segue-se um largo sorriso, a garbosa exibição de um feito masculino que iria alimentar a inveja nos amigalhaços. Havia que enviar fotos do momento por telemóvel. Senão, nas palavras do guionista do anúncio, “ninguém acredita”.

Na plateia, o beato da Opus Dei reprovou com veemência. É inaceitável que a juventude veja desfilar na televisão imagens de depravação. O que é feito da probidade das gentes? O que é feito dos bons costumes ensinados pela moral cristã? Como aceitar que um anúncio publicitário veicule uma mensagem que contém as sementes da devassidão, sem que ninguém corte a eito numa necessária censura a bem da moral e dos bons costumes? Convém não abusar da liberdade, senão a liberdade toma conta de nós. E depressa se transforma em libertinagem que fará de nós animalescas criaturas. Os sentimentos, os nobres e puros sentimentos, deixarão de valer. É a imagem do mundo em que vivemos: o império do hedonismo, de braço dado com o cerco dos prazeres carnais.

Por uma vez que fosse, haveríamos de testemunhar uma aliança entre o conservadorismo pacóvio do beato da Opus Dei e o vanguardismo de uma feminista exaltada. Que tomou a palavra para concordar com a reprovação do católico. Começou por se revoltar contra a intolerável coisificação da mulher. A empresa de telecomunicações continua na senda do marialvismo que, languidamente, se espalha numa sociedade que teima na desigualdade dos sexos. Naquele anúncio, é a mulher que vem embrulhada no papel de coisa. Um objecto inanimado, retratado à perfeição pela imagem do anúncio: só o homem está acordado, enquanto elas permanecem inertes, como se o sono a que estão votadas fosse a mordaça que submete o sexo feminino à resignação perante o império do prazer masculino. A feminista concluiu a sua indignada intervenção com esta interrogação: e se acaso os papéis estivessem invertidos, se na cama estivesse uma mulher ladeada por dois homens, não seria etiquetada como galdéria entregue à devassidão que só aos homens é consentida?

O marialva foi convidado a participar no debate. A escassez de neurónios só lhe permitiu esboçar o seguinte comentário: “só duas?!”

Foi a vez do adepto da alter-globalização entrar em cena. Lamentou que o capitalismo subverta a natureza das relações humanas (sem dar conta que a seita a que pertence é defensora de causas fracturantes onde se incluem comportamentos que escapam ao tradicional). E também lamentou que a publicidade atraia os consumidores com mensagens de gosto duvidoso, que o produto publicitado apareça envolvido neste papel vistoso. O capitalismo foi acusado de atraiçoar os ingénuos consumidores, que ficam desprotegidos perante o ilusionismo da publicidade cada vez mais sofisticada mas, ao mesmo tempo, vazia de conteúdo.

Até que da plateia emergiu uma tímida voz, alguém que se apresentou como o ingénuo de serviço. O rapaz apatetado sugeriu que todas as interpretações que revolvem os fundilhos do anúncio publicitário descobrem o que apenas existe nas sugestões que passam diante dos olhos dos críticos. Disse: as vozes anteriores estão equivocadas. Naquela cama estão deitados três bons amigos. Como a casa é pequena, e como não seria confortável deixar um dos membros do trio a dormir no chão, acabaram todos por se deitar na mesma cama. Além de que aquela noite invernal estava fria, o que convidava ao aquecimento dos corpos bem enroscados uns nos outros.

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