23.3.07

Duas bizarrias




Tomava o café ao balcão, enquanto passava os olhos pelos títulos dos dois jornais do costume. Num deles, na última página, um fait divers delicioso: este fim-de-semana, uma prova de motocrosse, categoria de infantis, lá para os lados de Santarém. Até aqui nada de insólito. Só que o patrocinador da competição é uma empresa funerária. O jornal assevera, misturando ironia com mau gosto, que este é o patrocínio adequado a uma corrida de motas.

E as funerárias não podem fazer publicidade? Porventura o jornalista, que deu de caras com a faixa com letras debruadas a amarelo garrido anunciando a prova de motocrosse, tenha ficado perplexo com a bizarria. Talvez tenha pensado que este é o patrocínio mais improvável para uma competição que envolve riscos para a integridade física dos participantes. Parece que há algum desconforto pelo cinismo da situação: ainda por cima por se tratar de uma competição onde os petizes montam nas motas e arriscam quedas onde ossos se partem e o sofrimento físico ameaça à saída da próxima curva. Cinismo: porque uma funerária faz negócio com o sofrimento dos entes queridos da pessoa que parte e usa os serviços da mortuária. É aceitável que a funerária se promova num evento que incute nos jovens devaneios de adrenalina que, executados na estrada, ceifam tantas vidas?

Perseguindo na senda do cinismo, dir-se-ia que a funerária percebeu o público-alvo. Os que assistem às provas de motocrosse são apaixonados pelas duas rodas. Não resistem a pisar o risco de vez em quando, abusando da velocidade e de manobras arriscadas. Às vezes, para sua desdita. Às vezes, pagando a ousadia com demoradas estadias no hospital, onde convalescem de ossos partidos. Outras vezes o infortúnio é tanto que nem chega a existir convalescença. É então que são requisitados os serviços de uma funerária. Percebe-se agora o rasgo da funerária que abriu os cordões à bolsa e emprestou o seu nome à prova de motocrosse juvenil. Aconselho os estudiosos da publicidade a olharem com atenção para este case study.

Segunda bizarria: noutra notícia para descomprimir, os leitores de outro jornal tomaram conhecimento que há um padre, lá para os lados de Vouzela, que é adepto da adrenalina ao volante. O padre confessa o pecado – não mortal pela cartilha da igreja: o pé direito gosta de esmagar o pedal do acelerador quando viaja pela A25. Disse que fica extasiado com o ar perplexo dos outros condutores com quem compete em velocidades alucinantes. Não porque os outros saibam da sua condição de sacerdote, que o padre não se entrega ao volante de sotaina. Os outros ficam atónitos porque o padre se desloca num pequeno Ford Fiesta. Os automóveis mais vitaminados derrotados pela perícia do clérigo desconhecem que aquele pequeno automóvel tem um bónus de potência que autoriza as façanhas. Diz a notícia: é o único no país, para além de outros dois que andam pelo campeonato de ralis.

Não se esperava que um padre desse a cara confessando os constantes atropelos ao código da estrada. Descaiu-se: já experimentou 210 quilómetros à hora. E percebeu que o bólide ainda pode alcançar velocidade mais elevada. Duzentos e dez quilómetros à hora! Tomara o senhor padre nunca ser apanhado por um radar da brigada a esta velocidade. Suspeito que é a protecção divina especial, que agracia os sacerdotes em primeira instância, a caucionar as diatribes rodoviárias do cura. Ele lá saberá do acordo privado a que chegou com o seu deus. Aposto que as preces deste padre envolvem também a atenção divina enquanto espalha os seus dotes de condução pelas estradas beirãs. Como filho dilecto de deus, os agentes que fiscalizam o excesso de velocidade são maquinalmente encaminhados para outros lugares quando o cura decide expiar a adrenalina.

E, no fundo, a funerária de Santarém e o padre beirão estão umbilicalmente ligados. Há almas que saem das mãos do sacerdote apressado para os tratos da funerária: os jovens endiabrados que se inspiraram no cura e se perderam de amores com as velocidades excessivas. O sacerdote prestou-lhes, sem o saber, a extrema-unção que é o maná para o negócio da funerária de Santarém.

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