6.2.07

Desidentificar por decreto


(Mote: por putativa influência do jet lag, o ministro da economia seduziu o capital chinês a emigrar até nós. Motivo de atracção: baixos salários. Em vez de dar para o peditório das metáforas mal amanhadas a propósito da idiotice do ministro – e elas foram tantas, quase tantas como o rosário de boutades de Manuel Pinho –, vou ensaiar os efeitos devastadores do episódio na identificação nacional.)

Ensinam na retórica oficial: somos aquilo que sabemos que não somos. Levam-nos à desorientação, com o jogo de espelhos que reflecte a imagem distorcida do que somos quando, sem intermediários, deitamos no divã do psiquiatra. A imagem vai sendo composta: uns pozinhos daquele povo, mais um detalhe de outro povo, e ainda uns salpicos de terceiro povo, numa amálgama que nos reconstrói. Os que conservam a lucidez percebem a encenação: anuncia-se aos quatro ventos, com a voz pomposa das declarações solenes, que somos o que está do lado de dentro de um castelo mirífico, quando pasmamos cá de baixo na contemplação das lustrosas ameias que nem sequer ousamos trepar.

A convivência com o quotidiano é este embuste invisível. A verdade dita-se por decreto, ao sabor das conveniências dos demagogos. A esfera apareceria tingida de cor-de-rosa, se o rebanho fosse todo amansado pelos pastores que propagandeiam as virtudes de um mundo que devia ser cor-de-rosa. Do espaço, o planeta haveria de aparecer todo pintado de cor-de-rosa, terra e mar na monocromia apática que cimenta a abulia. De tanto sermos invadidos pela realidade de pacotilha, até os mais resistentes vão sendo dobrados pelo cansaço. Centímetro a centímetro, pespega-se a convicção do que nos dizem que haveríamos de ser se não tivéssemos a têmpera com que nascemos.

O pior acontece quando um ilusionista vai de visita a paragens distantes e seduz os alienígenas com dons que não se encaixam na verdade a que temos direito para consumo doméstico. As cabeças formatadas disparam em curto-circuito. Habituadas à linguagem solene dos atributos fictícios, ouvem o pastor desmentir o que propala cá dentro. As dúvidas assaltam-nos: estará o pastor doente? Ou foi discurso na linha terminal de manjar bem regado, com o odor etilizado a empestar o entendimento? Ouvimos o chefe da banda a reiterar o desconchavo e destapa-se um dos adágios que o povo profecia: “pior a emenda que o soneto”.

Quando a poeira assenta, damos conta do imenso deserto à volta, sem pontos de referência para dali fugir. Nos ouvidos acostumados à carpideira oficial trina um súbito estampido: afinal não somos que nos convenceram que seríamos. Tanta a desorientação que não chegamos a perceber que a negação da realidade virtual é o retorno ao lugar de partida – à terra firme onde assentam os pés, em vez das nuvens adocicadas que se desfazem em nada quando as tocamos com as pontas dos dedos.

Instruídos para sermos o contrário do que somos, do outro lado do mundo a revelação que fomos demitidos do que não somos. Pungente orfandade, com a bênção do homem que assina os decretos. A desconfiança sobe aos píncaros: de regresso a uma temporária lucidez, deixamos de ser o que nos prometeram que algum dia seríamos; mas não estamos seguros que regressámos à essência pouco simpática que o arroubo oficial queria passar esponja. É um lugar inóspito, aquele em que ficamos depois de negado o oásis que gostaríamos de ser pela trincha da propaganda que atira areia para os olhos. A areia granulada tolda a visão. Para não seguirmos pela incerteza do quarto escuro, entregamos a mão no guia oficial – o mesmo que vende a imagem adorável do que haveríamos de ser algures no tempo futuro. O império dos homens providenciais, sempre cobertos de uma razão insofismável.

Mas eis que a calamidade se anuncia pela voz grossa dos sacerdotes do poder. Anos depois de apiedada condução do rebanho, o pastor descai-se com a inverdade da oficial verdade. Andámos anos a fio por caminhos ínvios. Quando conseguimos escorrer toda a areia dos olhos, o pastor já lá não está nem as explicações devidas. Paira, com uma aura imaculada, sobre todos nós, olhando para baixo com a sua comiseração pelos pobrezinhos que deixou ainda mais órfãos.

Venceu a decepção dos enganos, a uma dolorosa reconciliação com o passado que julgávamos já de funeral feito. O futuro prometido que sentíamos ser o dia de hoje era só um lapso da memória de quem foi além e, olhando para trás, viu o atraso indeclinável. Nunca se vira um sacerdote tão céptico do seu tempo. Nem dano maior à banda de que faz parte. Os simples mortais regressaram ao tempo a que pertencem. Perderam-se as ilusões. Depois de um turbulento período de desidentificação, resgatámos o que sempre fomos sem o auxílio de maniqueístas lentes desfocadas. Bem-haja ao sacerdote dos disparates.

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