23.1.07

A sagração do Inverno


A dolorosa demora do Inverno, quando as folhas do calendário já o anunciaram há muito e ele tarda algures. As cansativas temperaturas suaves, ventos de sudoeste com o cheiro da maresia, trazendo os salpicos do Atlântico que se esfarela na costa. Um mês depois, só um mês depois, os primeiros ares da invernia. Dizem que a culpa é do aquecimento global. Com o dedo autofágico do Homem. Para um nostálgico da invernia fria e duradoura, daqueles dias da chuva que ecoa os flocos de neve que já chegam derretidos ao solo, um trágico destino da humanidade.

Gosto do Inverno de antanho. Como gosto de me perder nas ruas a sentir o vento gélido a bater na cara, as mãos desnudadas para agarrar todo o frio que me cerca. Há neste frio glacial um palpitar purificador. Não consigo decifrar as razões. É apenas uma pulsão que esbraceja dentro de mim, desperta os sentidos para a captura dos pequenos detalhes que a pureza glacial desembacia. É uma suave loucura que me invade, temperaturas que põem o corpo a tiritar e, contudo, o corpo impelido a errar pelas ruas, só para se apoderar do frio.

É disto que se trata: tomo posse do frio. Desenganem-se os que acham que é o frio que toma conta do meu corpo. Ao contrário. Podem os lábios enrijecer, dobrados pelo cieiro cortante. Ou as mãos lacerarem-se na nudez, pela teimosia da recusa das luvas protectoras. Ou a cabeça vestir um farto capacete de frio, os cabelos elevados à condição de gorro. Ou os olhos, humedecidos pelo vento rasante, soltarem umas lágrimas, que são lágrimas de bem-estar. Posso fitar o espelho e ver uma cara alvoraçada pela alvura que o frio coloriu, com o nariz enrubescido pelo entesar gelificante. Nada é sacrifício que imponha desdenhar a passeata na companhia do frio.

Se há defeitos na minha cidade, um dos maiores será o desencontro com a neve. O frio é só uma amostra da invernia que me apraz. Falamos de uma invernia imberbe, que um par de graus negativos já é motivo para os holofotes das notícias. Mal habitados estamos, corpos tenros para os rigores árcticos que raramente vêm encontrar repouso nestas terras compulsivamente quentes. As correntes dos mares são um bálsamo para os queixumes dos exorcistas da sombria invernia. Afastam os ventos glaciais para outras latitudes. Temos direito a uns solfejos tímidos, poucos dias no ano, uma amostra dos rigores que não impedem a vida nas distantes paragens causticadas pelas neves que se eternizam semanas a fio.

A janela à minha frente está virada a norte. Passam-se dias e dias, semanas incessantes, os olhos erguem-se e notam que as nuvens chegam do lado errado – ora sul, ora oeste, sempre na avisada temperança climática que adia o frio terapêutico. Não me recordo de um ano com invernia tão vagarosa. Quando os olhos espreitam para além das pálpebras cansadas, revigoram-se com as nuvens empurradas pelos ventos que chegam do Árctico. É o Inverno que por fim se espreguiça, desperta do sono demorado. As nuvens entrecortam-se com o céu azul, mas de um azul diferente, diria mais nítido. A matriz do límpido perfume do frio.

Um lamento: que sejam fugazes episódios de frio. Gostava que a minha cidade fosse abençoada mais vezes pelos leves flocos de neve. Que a paisagem se tingisse de um branco resplandecente no dia seguinte ao nevão, com a manhã solarenga a avivar a alvura circundante. Para poder passear nos parques e demorar a vista nos lagos gelados, com a vítrea pedra de gelo a ecoar os pálidos assobios dos pássaros resguardados nos grossos troncos dos álamos envelhecidos.

Retenho bem viva a memória de um Janeiro dividido entre muitas cidades europeias, no meio de uma onda de frio que fez lembrar os Invernos de antigamente. Os sete graus negativos de Amesterdão, adensados pelo vento que rasgar até ao mais fundo dos duros ossos do corpo. Os canais gelados aprisionavam as embarcações ancoradas no cais, na única utilidade de serem adereços de um postal de Inverno. Ou o largo leito do Danúbio em Viena transformado numa estrada de gelo, com pessoas a ousarem a travessia pedonal entre as margens. E a neve acumulada em Berlim, a bela e traiçoeira neve que, umas horas depois, enregela até os pés protegidos por umas couraçadas botas.

As saudades da invernia que semeia ventos glaciais são o sinal do hirsuto esquimó mergulhado nas minhas profundezas. O frio balsâmico: o intenso inspirar do ar, a dor nítida que enche os pulmões e perpassa as cordas vocais, a dormência das extremidades anestesiadas pelo frio, os olhos petrificados pelo frio dilacerante. Nada disto traz maleitas. Apenas purificação do ser, curtido para acolher o sufocante calor que se demora mais tempo.

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