8.1.07

O poder é do povo e está na rua


Estou convencido: o povo é a alma da democracia. Quando vejo a populaça a sair à rua e a gritar, de pulmões abertos, contra o que a oprime, percebo que é pela voz do povo que se deve pautar a governação. Está ali o pulsar espontâneo das massas. Para confirmar o adágio: “é sábia a voz do povo” (descontando o julgamento em causa própria, pois quem sentencia a sapiência da voz do povo é o próprio povo…).

O povo vem para a rua: nos santos populares; olhar para o céu, embevecido, quando estalam os foguetes que sinalizam a entrada no novo ano; festejar as vitórias desportivas do clube da cidade, num ensejo para hostilizar os rivais; nas procissões, única manifestação silenciosa em que a turba se irmana numa devoção que se confunde com paganismo supersticioso; de chinelo na mão, com vontade para chacinar criminosos que vão ser julgados pelos crimes mais hediondos; protestar a sua discordância, ora sussurrando o incómodo, ora levantando uma vaga de fundo de um coro de protestos bem audível. A educação democrática ensina que não se deve calar a voz popular.

Não fosse o trauma da ditadura que silenciou longamente as vozes dissidentes, apetecia desmentir o dogma democrático. Estamos ainda na adolescência democrática. Presos aos tiques totalitários que as gerações passadas nos legaram, ainda comprometidas com uma prática que se enraizou até aos poros. Assim estamos, desorientados entre dois fogos: entre as pulsões totalitárias e a vontade de exprimir as liberdades. Quando nos entregamos à voragem libertária, confundimos preceitos: muito depressa se ajuíza a necessidade de colocar o microfone à frente de anónimos representantes do povaréu. Vinga a ideia que o povo é a essência da democracia; por tudo e mais alguma coisa, o povo é convocado para dizer de sua justiça. Nem que seja para falar do que não sabe, na triste manifestação da pura ignorância. Perverso entendimento de democracia, quando vem embrulhado no adjectivo “popular”. A democracia assim entendida dá a voz à ignorância.

O povo da minha cidade anda frenético por estes dias. Protesta contra a reorganização dos autocarros. Denuncia os senhores que no conforto dos gabinetes traçaram as novas linhas que vieram prejudicar o povo mais os seus hábitos de transporte. O povaréu desafia os administradores da empresa a deixarem as regalias do transporte privado, para sentirem as agruras trazidas pelas modificações. Multiplicam-se as "comissões locais" que protestam contra as alterações nas linhas. Não terá sobrado nenhuma modificação a gosto das populações das várias zonas cobertas pela rede de autocarros. Como já há largos anos não embarco num autocarro, das duas uma: ou o povo tem razão e a administração da empresa é inepta; ou os administradores não são tão incompetentes e tudo não passa das dores de ajustamento a novos hábitos.

Não ponho as mãos no fogo pela competência da administração da empresa de autocarros. Todavia, custa-me a crer que as modificações tenham sido feitas de forma leviana, sem uma avaliação no terreno. Das várias manifestações de protesto que ouvi nos últimos dias, há uma que revela a desorientação que se apoderou do povaréu. Uma senhora dizia, indignada, que o 53 (que desapareceu do mapa) andava sempre apinhado de gente e que a carreira que o veio substituir anda às moscas. Esta alma iluminada prefere que os autocarros andem cheios de gente; decerto mais confortável que um autocarro em que todos os passageiros têm lugar sentado e não são obrigados a viajar emparedados entre dois vizinhos que deixam escapar o odor desagradável de quem não vê um duche há vários dias. Eis a conclusão: o povo é pouco dado a hábitos de higiene. Num autocarro com poucos passageiros, o arejamento dilui os maus odores. O que o povo gosta é do cheiro fétido que emporcalha o ar.

Viva a democracia popular! O pulsar do povo é a manifestação genuína que deve ser a bússola de quem manda. Se o povo está organizado nas ruas e quer o regresso ao passado, só resta fazer a vontade ao povo. O retrato neo-realista diz tudo: velhinhas afogueadas no protesto, mostrando a desdentadatura e cuspindo perdigotos que veiculam o descontentamento; regateiras esbracejando para todos os lados, com impropérios à polícia que tentava assegurar a ordem; senhores mais calmos, porta-vozes da “comissão local de utentes”, desfiando o caderno de reivindicações, atapetados com trambolhões na gramática tão típicos de quem puxa os galões e tenta falar caro.

Desconfio que estes anónimos que emergem como porta-vozes serão militantes de quinta categoria que saltam das profundezas da nomenclatura partidária. É o aproveitamento oportunista de certos partidos que moldam os movimentos populares que nos surgem, diante dos olhos, como movimentos espontâneos. Tão espontâneos como a inocência de quem acreditar na sua espontaneidade.

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