19.1.07

Da desonestidade intelectual


Detesto campanhas eleitorais. Traduzem a democracia presa aos seus paradoxos. Da democracia elogia-se a capacidade para cruzar diferentes opiniões em discussões que se querem abertas e francas. A voragem da vitória e a ânsia de mostrar a superioridade dos pontos de vista levam frequentemente as pessoas a confundirem retórica com desonestidade intelectual.

Em qualquer acto eleitoral, as partes envolvidas esforçam-se por cativar eleitores. Seduzem-nos: com o pacote de promessas, um extenso cardápio das realizações que ficam agendadas caso sejam os escolhidos pela maioria. Os debates multiplicam-se. Acredita-se que os debates contribuem para um eleitorado informado, consciente, responsável. Tenho para mim que estes debates encerram em si o contrário do que deles se espera. Os requintes retóricos, aliados à bem estudada imagem que os especialistas compõem num candidato silicónico, são a arte do embuste em letra maiúscula.

O que os debates proporcionam é um rol de afirmações bombásticas, acusações aos adversários, truques rasteiros que não andam longe do terrorismo intelectual. A audiência assiste. Os que não se deixam iludir pela prestidigitação retórica conseguem discernir o candidato menos aldrabão. Se é que são influenciáveis pelo debate, retêm um princípio de acção: vão votar no candidato menos mau. A extensa maioria que ficar presa ao debate e se inebriar com as cambalhotas argumentativas dos candidatos, aplaude os actores sem chegar a discernir como diante dos seus olhos passa uma sórdida encenação, um mundo faz-de-conta, com políticos de plasticina que se engalfinham uns nos outros e rivalizam nas palavras vãs. O mais medíocre emerge na arte da sedução do eleitorado hipnotizado pelo debate que espalha as ilusões.

Olhando às promessas, o pai-nosso das eleições, campeia a desvergonha. Com a urgência de descobrir as mais impossíveis promessas, aquelas que dois olhos bem abertos percebem que pertencem ao domínio do irrealizável, as campanhas eleitorais transformam o futuro num paraíso. Às vezes ponho-me a pensar: se, por um toque de magia, todas as promessas arquivadas em campanhas eleitorais tivessem encontrado realização, seríamos dos países mais avançados do mundo.

As coisas pioram quando a campanha eleitoral se enquadra num referendo. E, pior ainda, quando o referendo desafia as pessoas a dizerem “sim” ou “não” a uma matéria de consciência individual. Caímos na armadilha do referendo à despenalização do aborto (ou, com o oportunismo semântico do governo, “interrupção voluntária da gravidez”, para desonerar a conotação negativa da palavra “aborto”). Caímos nas causas fracturantes, ademais. Não sou adepto dos consensos, do unanimismo fácil que nos encarreira para o vértice único do pensamento correcto. Apesar do meu desalinhamento com os consensos que ressoam letargia, cansa-me esta divisão entre o “sim” e o “não”. Não pela divisão em si: quanto mais facções, melhor; mais se enriquece o debate, na pluralidade de opiniões. O que me cansa é o acantonamento em apenas duas facções. No fundo, em vez “do” consenso temos dois consensos. Que se radicalizam à medida que se aproxima a data do referendo.

De um lado e do outro, crescem os argumentos que pisam o limite do impensável. Aquecem os espíritos, espicaçados pelas afirmações que ecoam do outro lado da barricada. Amontoam-se as manifestações de irracionalidade. Argumentos deploráveis aparecem com o embrulho da desfaçatez, como se fossem argumentos plausíveis. A audiência é convocada para escutar tais argumentos sem sequer questionar a respectiva honestidade intelectual. De ambos os lados, aparecem exacerbados militantes das causas que dizem as maiores patetices, tentando arrastar a audiência para o lodaçal onde se afogam sem perceberem.

Haverá, nesta campanha eleitoral, o mérito do refrescamento visual: não somos agredidos pelas mesmas caras dos profissionais da política de sempre que desfilam em todas as campanhas eleitorais. Há caras novas, anónimas figuras que emergem de um dos incontáveis movimentos de apoio ao “sim” e ao “não”. Caras novas, mas mensagem velha, retórica retorcida e cansativa. Os mesmos truques baixos que aprenderam com a classe política. E muita raiva destilada: argumenta-se sobretudo em desprimor da causa contrária. Esta campanha eleitoral distingue-se pelo discurso destrutivo. E pela cândida exposição de opiniões que são campeãs da desonestidade intelectual.

Alguém me diz: quantos dias faltam para o referendo?

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Faltam 21 dias. Precisamente 3 semanas.
Será distração minha, mas não tenho visto muita campanha e não me tem parecido particularmente movimentada e agressiva, embora possa imaginar o argumentário que vai correndo.
meu caro, respira fundo e conta até 10! É a Democracia em acção.