16.11.06

Além do Outono


A muitos o Outono entristece. O sol intimida-se no prenúncio da invernia. Pelo Outono, a ponte entre o estio festivo que irradia sol e o Inverno sombrio, ventoso, da chuva desagradável que encharca os ossos dos desprevenidos, do frio glacial que convida a não sair de casa. Para muitos, o Outono é o retrato da decadência. As folhas das árvores entram na etapa caduca, tingem-se de acobreado antes de fenecerem espalhadas pelo chão, revolvidas pela revoada de vento que as levita pelo ar numa dança furiosa.

Haverá no Outono o travo decadente das estações. Haverá no Outono a sensação rebarbativa dos corpos esfriados que buscam agasalho. Haverá no Outono os ventos transtornados que semeiam as tempestades danosas. Mas são ventos amenos. Não emprestam à atmosfera um fingimento árctico. Ainda assim, as pessoas antecipam a estação mais fria. Vão aos armários recuperar a roupa de Inverno, como se os ventos amenos fossem o prenúncio de uma neve que raramente é visita.

Pelo Outono, há pessoas que se enlutam nos dias que ficam mais curtos, na luminosidade solar que se ausenta dias a fio quando a estação se veste de rigores. As saudades do Verão instalam-se em pouco tempo. Antes do tempo, antes ainda dos rigores invernais ocuparem lugar, há já quem teça loas à longínqua Primavera que há-de vir, pelo dobrar da esquina do tempo tristonho que enfadonha os espíritos. E, no entanto, não há lugar à sagração outonal? O hábito é o de poetas e escritores fazerem a sagração da Primavera, porventura pelo cansaço da longa invernia que começa logo com os primeiros instantes outonais.

Reclame-se a sagração do Outono. Por ser imperativa a mudança, por os corpos exigirem novas atmosferas, cansados do calor estival, ciosos da ventania irada que sopra sinfonias desesperadas pelas frinchas das janelas. Sem que as pessoas percebam, o Outono é renovação. Estranha demanda, pensarão muitos: como pode o Outono ser renovação quando as folhas se arqueiam, caducas, preparando a queda no solo? Como pode alguém ver na outonal estação sequer um vestígio de renovação, quando as árvores se despem da verdejante e volitiva vegetação? Se renovação significa vida nova, um arejar refrescante que despeja luminosos horizontes, como pode o Outono aspirar ao domínio da renovação?

A vida é feita de ciclos. Na natureza também. E são estes ciclos que inspiram os ciclos da vida pessoal. Por vezes, o recato outonal é o pretexto para a reconsideração dos caminhos seguidos. Repensar a existência. O Outono dá o mote, com a visão das árvores descascadas pelo vento, das ondas revoltosas quando o vento sopra dos lados do Atlântico, dos escassos minutos da luz que vai empalidecendo um dia atrás do outro. Se o Outono dá início à hibernação da natureza, há algo de charneira para a enseada primaveril. O Outono é o começo de uma travessia, longa travessia, que marca o encontro dos corpos com as sensações desagradáveis da chuva que os ensopa, do vento furioso que despenteia cabelos e invade os corpos desde a superficialidade dos poros até às entranhas da ossatura.

Mesmo a cor sombria que domina quando chegam Outonos mais chuvosos; ou a mutação das árvores, ao perderem a nutriente verdura para se vestirem do acobreado que prenuncia a queda das folhas ressequidas; tudo retrata uma beleza que só a lupa atenciosa do Outono consegue discernir. Não é por ser sombrio, ou por despir as árvores da esfusiante vegetação, que o Outono encontra um sinónimo tristonho. Não é justo conotar o Outono com decadência. Se renovar é retemperar forças para um regresso pujante, quando o calendário julgar oportuno esse regresso, o Outono é a estação que perfuma esse descanso dos corpos no recato a que convida, no remanso do lar a que os corpos se entregam.

Os ciclos são feitos de altos e baixos. Tal como se sobe e desce para atravessar serranias que nos separam de um destino ansiado, também os ciclos são uma sucessão de bons e maus momentos. Os baixios são esquinas necessárias que devem ser dobradas para chegar ao destino final. A recusa em domá-los é a demissão de si. O Outono não é um descaminho das almas. É um lugar que impera atravessar, com a singeleza de quem observa o lado escondido da estética de uma estação (injustamente) tresmalhada.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Eu gosto muito do Outono. Serei suspeito porque é a "estação" (nasci em outubro), mas sempre me soube bem o cooling off após os Verões abrasadores, a possibilidade de passear sem andar a pular de sombra em sombra, arfando por uma água fresca ou uma cerveja geladinha.
Mais do que isso, o que me fascina no Outono é o que a fotografia nos mostra em ponto pequeno: a maravilha policromática que é esquecida pelos admiradores da explosão de cores da Primavera. Não tem a mesma exuberância, mas é mais discreta, como quem pinta com bom gosto em vez de borrifar a tela com todos os tubos de gouache que encontra. E há algo de tranquilizador no seu gradualismo: nada rebenta como na Primavera, na desaparece como no Inverno, nada seca como no Verão: as cores vão mudando, passando por diversas cambiantes, do verde ao castanho, passando pelo amarelo e pelo vermelho, as folhas vão caindo cada uma no seu timing, como se a natureza respirasse fundo e recuperasse do bulício e do braseiro anteriores e se preparasse com calma para hibernar.
Entretanto, vai-me encantando com uma maravilhosa tela em tons pastel e ocre.