9.10.06

Medo da morte



A televisão mostra imagens de uma insólita exposição de fotografia. Dois fotógrafos alemães tiraram centenas de fotografias a doentes em fase terminal. Conviveram com eles, todos sabendo que havia pouco tempo a separá-los do suspiro final. E depois fotografaram-nos nos instantes imediatos à morte. Imagens de cadáveres frescos, uma tranquilidade assustadora exalando das suas faces inexpressivas. A fotógrafa diz que as pessoas têm medo de morrer. Sobretudo quando sabem que a morte se anuncia, breve.

A fotógrafa relatava a sua experiência com todas aquelas pessoas que abriram as suas sofridas vidas para a câmara fotográfica. Conta como algumas dessas pessoas fizeram dos fotógrafos confidentes finais, como se fossem os sacerdotes que estavam a prestar a extrema-unção. Conta como tiveram que ser psicólogos de pessoas acamadas num leito que haveria de ser o seu leito de morte. Conta como se sentia metida num turbilhão de onde só conseguia escapar com a necessária pedagogia da natureza. Dizia-lhes, “porque todos havemos de morrer um dia”.

Que palavras tão assustadoras. A morte é um não acontecimento para um agnóstico. Perdido na amargura da fé desencontrada, o agnóstico sabe que a morte física é um ponto final na existência, diria absoluta, de qualquer pessoa. Há os crentes de fés que ensinam a existência de uma redenção post-mortem, houvesse um delicado arcanjo que viesse levitar a alma para um céu repousante, onde a alma vive eternamente. Há os que cultivam a crença na reincarnação (e como a ideia é em si assustadora: só de pensar no que cada um de nós vai reincarnar, sabe-se lá que vida de sofrimento, sabe-se lá que desvario de maldades, sabe-se lá o que mais estaria destinado embarcasse na nau da reincarnação).

E depois há os outros, almas penadas que vagueiam na escuridão espiritual. É a esses que o suspiro final simboliza o ponto final sem parágrafo. A derradeira página de um livro que tomba da estante e se perde num buraco negro, o da inexistência. Já não é como a dimensão celestial, onde podemos vigiar os entes queridos que ficaram vivos a chorar a nossa perda. Nem a esperança de que os dados voltem a ser jogados e nova personalidade nos calhe em sorte, ou em azar. É apenas um vazio inquietante, uma luz que se apaga, definitivamente. A natureza assim o impõe, e não há maravilhas da ciência que tenham trazido a perenidade da vida. Mas é nestas alturas que idealizo uma vida eterna pelo receio do buraco negro que se instala com a morte.

As mortes são choradas pelos que vivem a felicidade de as poder chorar. Por permanecerem vivos, mesmo que venham a suportar a dor imensa da perda. Há mortes providenciais, quando a vida é consumida por doenças que semeiam um terrível sofrimento. E quando se sabe que a medicina não acalenta curas, desenganadas almas entregues nos braços de uma ave agoirenta que afasta dúvidas da sentença final. São as mortes tragicamente necessárias. Fora destes casos, a morte é um manto iníquo que a natureza abate sobre os comuns mortais. A tentação da nossa fraqueza, vidas tão frágeis presas por dóceis cordéis à fonte que as mantém acesas. E, no entanto, quanto é o tempo ocupado a desalinhar as nossas próprias vidas, como se desconhecêssemos que elas são sempre, sempre, breves.

O rosto efémero da vida tem na morte a sua traição suprema. Vêm à memória alguns dos rostos imperturbáveis de vidas levadas pela morte, desnudados naquela exposição. Um paradoxo, na tranquilidade que mostram instantes depois de as vidas se terem esvaído, dobradas pela morte. Será por isso que a fotógrafa, na sua pedagogia anómala junto dos doentes prometidos à morte, lhes dizia, como se os sossegasse, que toda a gente morre? Vivemos; rimos, choramos, esboçamos sofrimento quando a vida se depara com sobressaltos, ou aquele ar de comprazimento quando a felicidade se demora. Esgares que mostram sentimentos, o fruto maior que brota da árvore da vida. Tudo se perde, as coisas boas e as coisas más, quando a morte toma conta do terreiro. E nem a exasperante acalmia dos rostos falecidos me convence que a morte não é a terrível sentença que nos desliga do que somos e dos sentimentos.

Resta não ocupar o sempre escasso tempo da vida a interiorizar os dilemas da morte. Ou fazer uma oportunista reconversão a um credo que aquiete o espírito intraquilizado pelas reflexões sobre a morte. Ou, o que é mais compensador, abrir os braços à vida e sugá-la em tudo o que ela possa dar, no bom e no mau. Na certeza que pior que a morte não será.

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