4.9.06

Uns laivos de realpolitik


Ao princípio fiquei confuso: estaria no meio de um pesadelo? Ou seria apenas da hora madrugadora a que tive que estar no aeroporto de Shannon (cinco da manhã)? De uma porta com acesso vedado ao público, um a um saíam militares norte-americanos mal encarados. Quase todos iam directos à casa de banho, mesmo à minha direita. O seu voo parara em Shannon em escala. Não percebi se estavam a caminho de uma missão num dos locais diligentemente patrulhados pelas tropas dos Estados Unidos (Afeganistão, Iraque), ou se estavam de regresso a casa, vindos de um daqueles locais. Nem ousei perguntar, perante a cara de enfado que todos mostravam. Não queria ouvir uma mal-educada resposta: “secret issue”.

Aos poucos, deixavam a casa de banho. Espalhavam-se pelos bancos da sala de espera do aeroporto. Não se misturavam com os passageiros. Estranhamente, os quase cem tropas que retemperavam forças não se sentavam lado a lado. Estranhamente, havia sempre três ou quatro bancos de distância entre dois militares. Nem se falavam. Apenas fitavam o canal ABC, vendo as últimas notícias do furacão que ameaçava destroçar o Louisiana, um ano depois da tragédia de New Orleans. Quando os antipáticos militares começaram a irromper, a televisão deixou de passar a britânica BBC; passou a sintonizar o canal ABC. Privilégios dos bravos do pelotão.

Um pelotão mal-encarado. Treinados para andarem a passear o ar assustador que chamava a atenção dos passageiros prestes a embarcar? Todos envergavam a farda esverdeada e uma botas cardadas silenciosas quando os passos marciais calcavam o soalho. Todos de cabeça rapada, perpetuando o imaginário militar que enquanto tropa há que manter a cabeça rasa, não vão parasitas vários saltar entre as cabeças do pelotão. A sua presença não passava despercebida junto das restantes pessoas, das pessoas normais. A imponência da pose, o garbo de serem o que são, como se fossem a aspiração máxima que um ser humano pode ter: nacionalidade dos Estados Unidos e membro do seu exército.

Impressionavam pelo porte físico. Espadaúdos, altos, coriáceos. Alongavam os passos, esticavam os ombros e, enquanto cerravam os maxilares, arqueavam os braços para o exterior. Pose para meter respeito. Como se fosse necessário, ali no meio de inofensivas pessoas, velhinhos e muito emigrantes polacos de visita a casa que abundavam, mostrar a pose que faz tiritar de medo quem os olhasse. Uns ainda imberbes, como um punhado de rapazes com barba quase deserta, mas já metidos neste meio embrutecido. Meio caminho andado para perderem de vez a inocência de uma adolescência ainda não inteiramente acabada de desfazer. Outros já entrados na casa dos trinta, alguns cabelos brancos emergindo por cima dos ouvidos.

Estranhamente, não se falavam. À medida que iam tomando conta dos bancos da sala de embarque, e afastavam das imediações os passageiros atemorizados com presença pouco simpática, esticavam os braços nos topos dos bancos e olhavam em redor, triunfantes. Como se tivessem a certeza das benfeitorias das missões de patrulhamento das zonas quentes do mundo. E como se tivessem a certeza que todos temos a certeza da sua bondade. Mas não falavam uns com os outros. A certa altura apeteceu-me perguntar se no colega do lado não está o inimigo mais próximo. Mais pareciam estranhos que nunca se tinham visto na vida, como os passageiros do terminal que, sentados nos demais bancos, também não dirigiam palavra ao ocasional vizinho do lado.

E depois tomei consciência da peça de política real que passava diante dos meus olhos. Estes são os actores que vão para o terreno executar a política que conta, a política real. Que sempre, sempre, se divorcia das milhentas páginas de efabulações teóricas. A diferença entre o mundo que temos, despido da sua inocência, entregue nas mãos de impiedosos fautores do bem necessário, emproado ao lugar de valor universal, inquestionável, imperturbável; e as páginas romanceadas que fazem da ciência terreno esotérico, tamanhas as diferenças entre o lirismo contido nessas palavras e o mundo ingrato que existe lá fora.
Fiquei sem saber se os bravos do pelotão estavam de regresso ou em escala para o distante local da sua missão, no estranho Afeganistão ou no escaldante Iraque. Fiquei sem perceber se as caras cerradas eram apenas o despertar de um sono interrompido pela escala técnica em Shannon. Ou se eram caras de enfado pela incógnita sobre as suas cabeças, a caminho de um destino tumultuoso, sem saberem se era viagem sem regresso. Ou se, regressados ao remanso do lar, os frenéticos militares já exibiam, antes do tempo, a saudade da adrenalina dos tiros, do estridente barulho do rebentamento de minas que os emboscavam, certos que o regresso ditava a modorra angustiante. Ou aquelas caras medonhas simbolizavam apenas, caso estivessem de regresso, o pesar pelos colegas que tornaram ainda antes, encerrados num caixão a caminho do cemitério?

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

É curioso o fascínio que a carreira militar e a imagem do guerreiro exerce sobre muitas pessoas, mesmo sobre aqueles que, supostamente, os abominam...