7.9.06

Liberais e conservadores, dúvidas metódicas e certezas incontestáveis


Aqueceu o debate entre conservadores e liberais, numa saudável cisão daquilo que se pode considerar “a direita”. Os conservadores acusam os liberais de nunca deixarem transparecer dúvidas. As suas ideias são a ilustração de imperativos categóricos, como se não houvesse lugar à dúvida como método.
Como radical libertário, estou mais próximo dos liberais. Sem qualquer ponto de contacto com os conservadores. Desde logo pela forma de olhar o mundo. São os que querem conservar o estabelecido, as tradições, sem questionar o que está cimentado. Como se fôssemos obrigados a prestar vassalagem ao legado dos antepassados, sem lugar à interrogação do que nos foi legado e como nos foi legado. Para os conservadores a História é um dado adquirido. Não é que estejam errados: está armazenada, a História, não se pode revisitá-la com o objectivo de a refazer (como os estalinistas continuam a fazer). Discordo é da passividade dos conservadores perante os acontecimentos que estiveram na origem do que vivemos hoje. Não sei se o fazem por comodismo, para não remexerem na consciência que os obrigaria a questionar usos e costumes. Não consigo partilhar esse conformismo, que depressa se transforma em anemia intelectual.

É incompreensível a acusação dos conservadores. Podem os liberais, sobretudo os mais exacerbados na denúncia do gigantismo do Estado, perfumar a sua retórica com o embrulho das certezas incontestáveis. Todavia, não são os conservadores os expoentes máximos dos imperativos categóricos quando se mantêm agarrados ao passado, incrustados nas tradições que vêm de tempos remotos, incapazes de olhar para o tempo presente sem os olhos que viram o passado? Na comparação entre conservadores e liberais, quem se agarra à tábua de salvação das certezas são os primeiros.

Sendo radical libertário – logo, distante do mainstream do liberalismo tradicional, que bebe inspiração em Adam Smith, David Ricardo, Ludwig von Mises, Friedrich Hayek – vou às raízes do niilismo para questionar o estado de coisas que nos cerca. Quando alguém se inspira no niilismo tem como pressuposto a dúvida que o coloca em sistemático estado de negação: negação do que existe, sem haver a necessidade de virar a página e oferecer a alternativa ao que a abordagem niilista destrói. Visto que o ponto de partida é a negação do que está consolidado, do estado de coisas que apazigua a existência dos conservadores, a acusação destes é espúria.

Uns questionam o papel excessivo do Estado (liberais); outros condescendem, julgando que o Estado é determinante para a ordem pública e para manter a segurança de pessoas e bens (conservadores). O contraste é suficiente para perceber quem tem certezas inabaláveis e dúvidas constantes. Quem contesta o estado de coisas actual é a corrente que afirma dúvidas. Quem o faz não são os conservadores, na sua bonomia geral perante a herança do passado a que vivemos agarrados, os sedimentos acumulados que criaram a sociedade que somos. A acusação dos conservadores é um tiro no pé, o produto do desconforto de quem se vê ao espelho e não gosta do que vê. O império das certezas tem o seu templo na casa dos conservadores.

Não me revejo no liberalismo clássico (não confundir com os liberals” norte-americanos, esquerdistas moderados para quem a existência de um Estado de dimensões generosas não traz qualquer incómodo). Por divergência filosóficas de base, pois Smith, von Mises, Hayek rejeitam os pressupostos niilistas. Até um dos nomes mais emblemáticos da corrente radical libertária – Murray N. Rothbard – se insurge violentamente contra o niilismo. Da maneira que vejo as coisas, só há uma forma de ser radical libertário: partindo do niilismo total, que preveja o desmantelamento do Estado, excrescência totalitária que asfixia – em vez de garantir – direitos cívicos e liberdades individuais. Assim se percebe como um radical libertário está mais próximo dos liberais que dos conservadores. Os primeiros denunciam as atrocidades que o Estado comete todos os dias. Só aceitam o Estado mínimo. Os segundos, enamorados por um Estado com mão de ferro (que amiúde se confunde com ditaduras, sem o serem formalmente), acham que só um Estado forte pode garantir a sobrevivência das tradições que vêm do passado e que, dizem, devemos preservar sem questionar.
A forma mais digna de respeitar a autonomia do ser humano não é o refúgio em dogmas irrefutáveis, como o fazem os conservadores. Afinal, sem surpresa: beatos militantes, uma das expressões do seu conservadorismo, desprezam a emancipação intelectual da pessoa. São eles, conservadores, que vivem embriagados de certezas. Aos liberais, honra lhes seja feita, o estado de insatisfação que os leva a colocar sucessivas interrogações perante o actual estado de coisas.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Eu devo ser uma avis rara: considero-me Liberal e Conservador.
Liberal, porque defendo uma redução do papel do Estado, nomeadamente a sua interferência na economia, oponhome ao seu gigantismo butocrático e administrativo, abomino a sua tentação intrusiva na vida dos cidadãos, enjoa-me a sua diarreia legislativa e regulamentar.
Conservador, porque defendo um exercício forte da autoridade tradicional do Estado nos designados áreas da soberania, maxime, a Defesa, Negócios estrangeiros, Segurança Interna e Justiça e, sim, na defesa de um conjunto de valores (não necessariamente imutáveis), mas que são caracterizadores da sociedade e consensuais para a grande maioria dos cidadãos.