27.9.06

Gato preto




De casa até ao destino cruzei-me com três gatos pretos. Confundiam-se com a noite que teimava em retardar a alvorada. Eram os únicos inquilinos das ruas desertas. Vi o primeiro gato, depois o segundo, mais tarde o terceiro. Interroguei-me porque tanta gente tem a mania de azarar os gatos pretos, como se eles fossem demoníacas personagens que existem para espalhar desgraças pelas pessoas que se cruzam no seu caminho.



A pesquisa forneceu pistas interessantes: “a superstição teve origem na Idade Média, quando se acreditava que os felinos, devido a seus hábitos nocturnos, tinham parte com o demónio – e se o bichano era da cor negra, habitualmente associada às trevas, pior ainda para ele. No imaginário medieval, o gato preto tornou-se tão inseparável da mística figura da feiticeira quanto a vassoura voadora. No século XV, o papa Inocêncio VIII (1432-1492) chegou a incluir o pequeno animal na lista de perseguidos pela inquisição. Nessa tentativa de combater o paganismo, a inquisição inverteu uma tradição milenar, pois os gatos eram reverenciados como divindades, principalmente entre os antigos egípcios”.



Sou parcial na análise. Os gatos pretos exercem fascínio sobre mim. Há algo de misterioso nos gatos pretos, fugidios, parecendo que sabem que são perseguidos pelas pessoas atreitas à irracionalidade das superstições. O gato preto é o expoente mais alto da beleza felina, no contraste do pelo negro com os olhos verdes que se esbugalham no meio da sua face. Só a ignorância do povo, por crendices patéticas, ao supor que o gato era a encarnação de bruxas malévolas, explica o passado lamentável que juntou as peças para o imaginário – também ignorantemente popular – que associa o gato preto ao azar.



O povo é pródigo em inventar superstições que se afastam do domínio do razoável. Ele bate três vezes na madeira quando invoca algo que, a dar-se, traria o pior dos azares. Recusa-se a passar debaixo de escadas, porque o azar terá encontro marcado ao dobrar de uma esquina. Sacrifica galos negros na crendice de que o sangue derramado afugenta os espíritos maléficos que atemorizam as criancinhas. Não gosta do treze, o convencionado número do azar. Se os caprichos do calendário fazem coincidir o dia treze com uma sexta-feira, é o cúmulo do azar. Com bruxas montadas em vassouras supersónicas à mistura, as bruxas horrendas, sempre com uma inestética verruga no nariz, nascidas para distribuir maldade pelas pessoas todas bondosas espalhadas pelo planeta.



Estas crendices populares, destituídas de racionalidade, são o maior adversário do catolicismo. A hierarquia eclesiástica devia estar menos preocupada com a violência dos radicais islâmicos; o “inimigo” está entre os crentes que vão, religiosamente, à missa dominical, baptizam os petizes (não vá o demo desviá-los pelos maus caminhos), casam-se aos olhos de deus fazendo juras que sabem que não vão ser cumpridas, e depois entregam-se nos braços de bruxarias e superstições que negam os dogmas da igreja que velam.



O problema está nas incoerências que nos assaltam. Se parar dois segundos para interrogar se sou supersticioso, espontaneamente digo que não. E desdenho de certas crendices que se misturam com superstições, pelo patético que delas transpira. Todavia, há certos rituais que me levam a perguntar se não fazem parte do supersticioso. Quando me visto, dou primazia à peúga direita, à manga direita da camisa; a perna direita entra em primeiro lugar nas calças, primeiro calço o sapato direito. Não sou daqueles que “entra com o pé direito” como sinal que convoca a sorte dos deuses. Mas não será esta mania de dar primazia ao hemisfério direito do corpo, nas várias peças de vestuário e calçado que impedem a nudez, uma manifestação de superstição?



Um dia destes vou fazer a experiência. Inverter hábitos no desafio à superstição recalcada (que, contudo, não tenho a certeza que o seja), começar pelo lado esquerdo do corpo nas peças de vestuário e de calçado. Porque a superstição é irracional. É uma demissão do indivíduo, que se entrega nos braços dessa coisa inominável que se convencionou chamar “destino”. Como se o “destino” de cada pessoa não fosse um trajecto escolhido pelo próprio, sem a interferência de superstições absurdas que teimam em convencer-nos que as encruzilhadas que aparecem pela frente são o produto de decisões alheias.




A superstição é uma tirania que asfixia a liberdade individual. Com vítimas colaterais geradas pela estupidez humana. Os gatos pretos são vítimas maiores da irracionalidade humana dedicada a explicar azares com as manobras conspirativas das bruxas que se apoderaram do seu corpo. É o habitual: a demissão da responsabilidade individual. É preferível sacudir o ónus para acções alheias. É a enraizada mania de fazer a culpa morrer em celibato, ou atribui-la aos outros pelas acções que só dizem respeito ao indivíduo.

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