14.9.06

Excessos de imagem (ou: há males que vêm por bem)


A RTP devia ser privatizada. Não me convence o argumento do serviço público de televisão, como se fosse um imperativo para temperar os exageros das estações privadas. Sei que a SIC e a TVI são as responsáveis pelo nivelamento por baixo da qualidade televisiva – ele é o lixo televisivo em forma de talk shows pirosos, os programas onde o insólito convive de mão dada com o mau gosto, a informação incendiária. Muitos não perdem um segundo para diagnosticar o problema: a culpa é da abertura do espaço televisivo à iniciativa privada.


O problema não é esse. Só os saudosistas de um período revolucionário que não passou da fase embrionária (o Verão quente com os ensaios de totalitarismo de esquerda) se agarram à certeza dos malefícios da televisão privada. Hoje como então, parece que continuam a padecer de um velho estigma da portugalidade divina: orgulhosamente sós. Se por todo o lado a televisão se dinamizou com a abertura à iniciativa privada, porque haveríamos de ser uma excepção?


Vem isto a propósito da existência de um canal público e de como todos os governos – todos, sem excepção – caem na tentação de o instrumentalizar. Fôssemos uma democracia já amadurecida e os governantes, de um e do outro lado do bloco central, saber-se-iam comportar como, por exemplo, no Reino Unido. Lá a BBC mantém-se na esfera pública. Porém, continua a ser independente do poder político. É um princípio de não intromissão que os políticos respeitam. Um pudor que os jornalistas dão como adquirido. Por cá a democracia está ainda nos alvores da adolescência. Com as erupções cutâneas tão típicas dos adolescentes, aqui na forma de constantes intromissões na arte de informar, fazendo da informação do canal público uma correia de transmissão dos interesses partidários de quem ocupa o poder.


O bloco central – a razão de estarmos tão para trás, quando poderíamos ter progredido como a Irlanda, houvesse competência no bloco central – tem telhados de vidro na matéria. Os comportamentos são indiferenciados. Quando um dos partidos governa não se coíbe de manobrar a RTP, seja de forma descarada ou mais discretamente. O partido que está na oposição não se cansa de protestar contra a instrumentalização governamental da televisão do Estado. Só à espera da alternância para, assim que se entroniza no poder, logo fazer o que tempos antes criticava com indignação. A desvergonha no seu expoente mais elevado.


A arte de meter a pata na informação que chega aos ecrãs: há uns que são mestres, outros que foram desastrados. O anterior governo era tão inábil que nem sequer sabia manipular a televisão. Era um elefante em loja de cristais. O actual governo quis entrar de mansinho. É o que sucede sempre que os partidos do bloco central alternam no poder. O que chega ao poder promete romper com os hábitos estabelecidos. Como vinha de uma retórica de protesto contra a manipulação da RTP pelo antecessor, fica-lhe mal entrar a matar, fazendo aquilo que tão asperamente criticava enquanto esteve na cura de oposição. O tempo vai passando, a poeira assentando, e tudo regressa à forma original. Aos poucos, as interferências vão-se notando.


O fenómeno repete-se, cansativo. É uma enfermidade da nossa democracia ainda jovem. Dir-se-ia, uma doença sintomática da juventude. Quando este governo conquistou o poder, esperava que mais tarde ou mais cedo a instrumentalização desavergonhada da televisão viesse ao de cima. As suspeitas adensavam-se pela personagem escolhida para tutelar a comunicação social. Alguém lhe chamou, em tempos, o “sapo com óculos”. É alguém que defende, com a maior desfaçatez, o que só ele – e os militantes possuídos de cegueira – consegue ver. Depois de uma entrada de sendeiro, a manipulação está em grande. Desde há meses, não há um único dia, um único noticiário, em que a RTP surja como curadora da imagem do governo. Com o primeiro-ministro à cabeça, ele que se preocupa mais com o acessório (as questões de imagem, o prolongamento no poder sem qualquer projecto que não seja uma agenda pessoal), mestre na difusão de uma imagem que remete para plano secundário o essencial (a substância da governação). Há outros ministros que merecem os diligentes favores da RTP: o Costa dos incêndios e o arrogante da saúde levam a palma.


Quando a coisa é excessiva, tem efeitos contraproducentes. Acho bem que este governo leve ao extremo a instrumentalização da RTP. De tanto cuidar da imagem, de tanto passar a imagem de que este é um governo feito de pessoas só com virtudes, o público há-de cair em si, cansado de homens tão perfeitos. Então, desmascarados, serão vítimas da sua fobia pela imagem. Daí à desgraça, um simples passo. Com a inestimável ajuda da RTP.

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