20.9.06

Do “fascismo social”





Há algo de encantador na capacidade imaginativa do ser humano. Como ele reinventa acontecimentos, revisita expressões que passam a estar possuídas de um novo significado. A modernidade atravessa essa reinvenção dos termos. Por hoje, há palavras que só não são banidas do léxico porque convêm para lembrar a perfídia que se apodera de certas pessoas. Como se fosse sempre urgente enfatizar a antítese do caminho correcto, uma virtude social e de ideias que não merece contestação. Aos dissidentes, chega-se-lhes com a acusação de “fascista”.

Há tempos deparei com a revisitação da palavra, numa insólita associação ao “social”. Alguém (cuja identidade não me recordo) fazia o obituário do Independente. Sem saudades do legado deixado pelo semanário que espalhou tanta rebeldia nos anos iniciais, essa pessoa acusava o Independente de “fascismo social”. Dava exemplos: a sanha persecutória a Macário Correia, com o desdém que Miguel Esteves Cardoso soube exprimir; as resistências exibidas aos arrivistas vindos do nada e que tentavam fazer carreira política, subindo a pulso, vindos da província; até Cavaco não escapou às manifestações de “fascismo social” – ele mais os seguidores que, na altura, foram alvo da chacota estética do semanário por abusarem das peúgas brancas como complemento do fato e da gravata.

Fico perplexo com a acusação fácil que tenta denegrir, definitivamente e sem contestação, aqueles de que não gostamos. Podemos não concordar com a crítica fácil do Independente, com a perseguição que o jornal fez a certas personagens que pairavam na paisagem política doméstica. Mas daí a destapar a acusação de “fascismo social”, só o despautério de quem não tem argumentos para combater os alvos da crítica. Pensam os críticos que o rótulo “fascismo social” é tão poderoso que encerra qualquer hipótese de discussão subsequente. E assim fica provada a enorme tolerância democrática destes arautos da moralidade que, à falta de melhor, lançam a âncora do “fascismo social”. Os alvos da crítica não têm o direito de zombar com quem lhes apeteça. A moralidade dos sacerdotes impede-o – pudessem eles ser entronizados nesse papel, e decerto a mordaça soltar-se-ia com assiduidade.

Há quem se tenha revisto na crítica a Macário Correia, a Cavaco, aos deputados e ministros PSD que abusavam da peúga branca, aos arrivistas chegados da província que se punham em bicos de pés quando a ribalta batia à porta. Há quem discorde do método, quem tenha lamentado a exuberância elitista de uma casta lisbonense que não admite a invasão de pacóvios que tentam a sua sorte no turbilhão da grande urbe. São os mesmos que, atirando o “fascismo social” como acusação, censuram a atitude de quem acha que Lisboa é uma coutada reservada aos que já lá estão, vedando o acesso aos saloios que desembarcam na capital à procura da exposição que a província não permite.

Isto é o “fascismo social”? Os lisboetas de gema, que usam as páginas de um jornal para ensaiar a sobranceria pelos forasteiros que ousam competir pelas sinecuras que julgavam reservadas aos seus pares, podem ser acusados de “fascismo social”? Há aqui uma confusão fácil de conceitos. Que o Independente tenha praticado amiúde a “exclusão social”, através do elitismo que não escondia das suas páginas, parece-me pacífico. Ora as palavras existem com um certo sentido. Por mais que a certas pessoas seja conveniente distorcer palavras e acontecimentos, só aos mais distraídos o rótulo de “fascismo social” tem as propriedades do cimento. Por este andar, todas as formas de exclusão se encaixam num fascismo qualquer. Que tenham cuidado os seus arautos: saudosistas de um império extinto (o soviético), alguém lhes virá lembrar que nesse império havia “fascismos” recorrentes…

Por estes dias, a palavra “fascismo” é uma espécie de albergue espanhol onde cabem todas as situações que, subjectivamente, deploramos. É o patinho feio das palavras, um termo sarnento que retrata o hediondo que se lastima. Já agora, proponho que se autorize a mutação etimológica da palavra. Modificava-se o dicionário. “Fascismo” deixaria de ser o “sistema instituído por Mussolini, em Itália, caracterizado pela defesa de um nacionalismo exacerbado e pelo exercício de um poder centralizado e ditatorial baseado na repressão de qualquer forma de oposição.” E passaria a ter o seguinte significado: “qualquer atitude ou comportamento que se encontra nos antípodas daquilo que uma pessoa defende”. “Fascismo” seria tudo aquilo que o Homem quisesse, na censura do outro.

E, então, todos seremos fascistas (aos olhos do outro).

Sem comentários: