18.9.06

Cansaço das religiões


Cansado. De ver como as pessoas reagem quando a sua religião é beliscada. Normalmente quando a ofensa parte de crentes de uma religião rival. E de observar como há devotos de uma religião que ajuízam os deméritos de religiões que não são a sua. É o poderoso fermento da discórdia. Coloca a humanidade na senda da auto-negação. Há nesta voragem auto-destrutiva uma bestialidade singular. Porventura as guerras que se fazem em nome da religião serão a negação das divindades representadas. A crer no dogma de que os deuses são bons.


O mundo ferve em pouca água quando há ofensas cruzadas entre diferentes crenças. O ponto de ebulição é surpreendentemente baixo: basta que umas palavras inábeis sejam amplificadas no seu sentido por aqueles que se julgam alvos da acusação. Convém contextualizar: o Papa proferiu lição académica numa universidade alemã. Recuou aos tempos de professor de teologia nessa universidade e dissertou sobre a violência do islão. Tocou numa ferida que nunca há-de cicatrizar. Do outro lado – ou em todo o lado da diáspora islâmica – vieram reacções incendiadas. Exigiram-se desculpas ao Papa pela ofensa proferida. O Papa limitou-se a explicar o contexto e o significado das suas palavras, sem que se ouvisse, por uma só vez, o perdão tão típico do catecismo católico.


Agora o mundo anda entretido com as promessas de sangue derramado para vingar o islão ofendido. Do outro lado, a defesa da liberdade de expressão que não pode negar ao Papa a emissão da sua opinião. Cava-se o fosso entre duas civilizações. Haveremos de perceber que a humanidade assim sitiada nos braços tentaculares das religiões é uma humanidade agrilhoada, alijada da sua autonomia, carente de liberdade. Há-de ser este o abismo que nos empurra para mais conflitos, mais teorias defendidas em voz alta, com as emoções desfraldadas no alto do mastro; a antítese da razão. Algures no tempo, mais cordeiros sacrificiais, apenas pessoas desprezadas em nome das religiões que se combatem.


Para um agnóstico falta a imparcialidade para ajuizar o melindre das ofensas dos islâmicos ou o direito dos católicos fazerem a sua interpretação da história das religiões. O mesmo agnóstico, todavia, sedimenta o agnosticismo ao deparar com as reacções exacerbadas que semeiam fundamentalismos de parte a parte. Se é verdade que o fundamentalismo dos islâmicos aparece com maior nitidez, que não se ignore o fundamentalismo suavizado dos católicos.


Não se devia exigir mais cautela ao sumo-sacerdote do catolicismo? Não é verdade que a diplomacia exige contenção verbal quando se quer evitar a erupção de convulsões desnecessárias? O Papa foi inábil na utilização da palavra. Não que a sua liberdade de expressão deva ser cerceada, para não haver capitulação perante o garrote que os islâmicos querem impor no ocidente. Por vezes convém perceber de táctica: neste caso, seria difícil antecipar que o mundo islâmico – fundamentalista ou não – viria gritar o seu protesto em uníssono? Às vezes, com os nossos actos e palavras empossamos o adversário de trunfos difíceis de rebater. E a menos que haja quem deste lado anseie por um conflito ainda mais aberto com o islamismo, não consigo perceber nem a trapalhada do Papa nem as virgens pudicas que vieram em sua defesa, com a oportunista invocação da liberdade de expressão como argumento incontestável.


E sim, é verdade que há reacções exageradas entre os islâmicos. Ou porque lhes convém, para passarem para o lado de cá a ideia de que são alvo de vitupério que os desrespeita. Ou porque é destas oferendas que os seus sacerdotes necessitam para arregimentarem em seu redor uma turba ainda maior de indefectíveis seguidores. Sem o saberem, os clérigos católicos que amparam as imprudentes declarações do Papa contribuem para a formação de mais mártires em nome de Alá. Mais terror espalhado, com a chancela indirecta de quem tutela o catolicismo.


Não fosse agnóstico por ausência de fé e a irracionalidade crescente das religiões em permanente confronto era motivo bastante para nutrir o agnosticismo. É desta estrada paralela que vejo o Homem suicidário com a ânsia de ver respeitadas as suas crenças, pronto a entregar a vida em nome dos seus deuses. À deriva, num ensandecimento colectivo que empurra para um turbilhão irreprimível. Ou os deuses não se fazem compreender por quem os representa na terra; ou os homens não estão à altura dos deuses, incapazes de corporizarem a mensagem de paz e de amor que os deuses, diz-se, ensinam; ou os deuses, responsáveis últimos pela autofágica destruição da humanidade, serão os seus maiores inimigos.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

Já não suporto, não tenho mesmo pachorra, para o vidro de cheiro em que os que pretendem falar em nome do Islão se transformaram. Também me causa repulsa a tibieza e atrapalhação de muitos no Ocidente quando a "rua árabe" se agita, como se lhes devêssemos alguma. Qualquer dia estamos reféns desses bárbaros e as "profecias" de Stanley Hoffmann tornara-se-ão realidade!