7.8.06

Como é errado chamar "silly" a esta "season"

Agosto entra e vamos a banhos. Convencionou-se a “silly season”. As coisas sérias entram em banho-maria e o cérebro mergulha na salmoura. Triunfam as futilidades. Damos atenção ao acessório. Mudança de ares, mudança de hábitos, a rotina instalada das semanas habituais renegada em tempo de férias. Daí aos não acontecimentos, um ápice. Dir-se-ia que o tempo pára em férias. Que o mundo fica suspenso até que o carregamento de baterias esteja completo. Como o descanso dos neurónios é imperativo, damos valor aos não acontecimentos que se transfiguram em alvos de atenção.

É a “silly season”, no seu esplendor. Inebriados pela tontice, pelo patético, por notícias que nos outros meses do ano o não chegam a ser. Saldam-se as contas com um ano atarefado, com a falta de tempo para os projectos que vão ficando eternamente adiados. Porque o trabalho, o sagrado trabalho, consome quase todas as energias. Pelas férias fora, é como se o cérebro se desligasse da corrente. Há um convite à acefalia colectiva, com a histriónica “silly season”. Férias e “silly season” são sinónimos necessários, como se andassem de braço dado, como se uma fosse oxigénio da outra.

E, contudo, há uma ideia profundamente errada nesta associação que se enraizou nos costumes. Com as férias vem o desligar da corrente. Como se levitássemos no descanso que, ensinam os dogmas, os marxistas de antanho se encarregaram de legar à humanidade como direito inalienável. O descanso é um direito fundamental. Incontestável. Mas nestes tempos em que o próprio tempo parece que nos consome com uma voracidade ímpar, nestes tempos em que somos empurrados para a escravização do trabalho, estar de férias é um crime. O descanso é uma diatribe que contraria os apelos da voracidade do tempo, da competitividade que esbulha a generosidade do ser. Como se houvesse uma dicotomia: trabalhar – muito, e bem – honra; o descanso, tempo inutilmente perdido.

A partir do momento em que as férias inauguram a “silly season”, está tudo explicado. Com as férias abandonamos os postos de trabalho, onde tudo é sério, onde a responsabilidade das pessoas fala mais alto. No remanso de uma cálida praia, ou bebendo tequilhas numa esplanada em fim de tarde, ou no divertimento que entra pela madrugada dentro em discotecas barulhentas, ou apenas num churrasco numa roda de amigos – é o ócio que triunfa. Como se no ócio a responsabilidade se ausentasse das pessoas, como se elas deixassem de pensar, acéfalas criaturas alijadas do altar tão sagrado onde se produz. Sem responsabilidade, sem as preocupações de se saber uma ínfima peça da engrenagem que “faz avançar o país” (ou o “País”, consoante as preferências), as trivialidades erguem-se na tabela das prioridades. “Silly season” em toda a sua pujança.

Nesta era em que divertir, descansar, ser feliz fora do trabalho, tudo parece um corpo estranho que já não pertence ao Homem, há expressões que vertem uma tremenda carga negativa. A “silly season” vem perfumada com o odor da inutilidade. Coisas tontas, imbecis, triviais, a banalidade em toda a sua extensão: um repto à não seriedade, porque o que é sério apenas acontece quando estamos escravizados pelo trabalho. Para que não fiquemos distraídos com o acessório, as convenções estabelecidas encarregam-se de lembrar, a toda a hora, que é o trabalho que enobrece. Nas entrelinhas: o não trabalho envergonha. E quando tantos dedos denunciam a perversa globalização que tresanda a um sempre culpado “neo-liberalismo” que terá nascido nos Estados Unidos, eu contraponho: quanto mais aquela dicotomia cresce, mais nos “japonizamos”. São os japoneses que se casam com o trabalho. A “silly season” deve ter sido inventada em Tóquio.
Agostinho da Silva é que tinha razão quando esgrimia argumentos acerca da indignidade do trabalho para o ser humano. Com a carga simbólica que as férias têm, quando vêm aprisionadas à “silly season”, apetece reforçar a ideia de Agostinho da Silva. Já não bastava termos que trabalhar para prover o sustento, estamos agora acorrentados nas masmorras do trabalho, como se o trabalho e apenas o trabalho interessasse. É o descanso que nos faz melhores. Pessoas e, no fundo, trabalhadores.

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