10.7.06

Às vezes anoitece


E os lençóis parecem vazios, frios, como se fossem a aurora de um deserto visitado em pesadelos. Às vezes anoitece com o desejo de voltar a ser manhã, depressa. Para deixar a noite sem vida num canto da memória sem lembranças, e voltar a ver tudo que os olhos bem abertos conseguem ver. Porque é pela noite que os lençóis nos embalam num sono que rouba os instantes preciosos da vida sempre curta. Dizia: o sono é tempo de vida a que perdemos o rasto. A engenhosa arte de um filisteu que ludibria, convencido que pelo sono se retemperam energias exangues. Nada mais errado. O sono é tempo roubado à vida.

Mas quando anoitece, o corpo derrotado pelo cansaço vagueia, inerte, autómato em direcção dos lençóis. Apetece entregar-se aos lençóis. Surgem como o campo onde se revigoram as forças, o milagroso altar que inventa a força para dobrar as vicissitudes de mais um dia. Que interessam essas deambulações demenciais, quando sei que estás ao meu lado? Anoiteça, sozinho ou contigo ao meu lado, e sei que à distância que estivermos pulsam as veias no clamor pela tua presença. Nem que não haja almofada ao lado, levo-te comigo na mais singela das presenças. Nem quando durmo sozinho a tua companhia se ausenta.

O vento sopra com força. A brisa que nos despenteia eleva um esgar de desconforto. Do alto do promontório avistamos o mar infinito. Infinito pelo cunho do horizonte, que só deixa ver mar e mais mar, até a linha do horizonte se fundir com o fio ténue do céu. Lá em baixo as ondas esmagam-se contra as rochas. O estampido ecoa nas cavernas perfuradas pelas ondas incessantes, ora no tempo bonançoso, ora nas tempestades que silvam a fúria do mar encapelado domado pelo rochedo abrupto. E tudo contemplamos, com o silêncio de quem sabe onde estão as vozes tão altas da cumplicidade só nossa. Ali estamos, uns instantes, limpando uns salpicos do mar que dançam sem sentido, empurrados pelo vento que sobe até ao promontório.

Ali também há-de anoitecer. Só com o silêncio das vagas alterosas que encontram o seu leito nas rochas sempre molhadas, no musgo corajoso. Ali anoitece, mas o mar silvestre nunca dorme, no constante vai e vem, a força indomável que ousa nunca adormecer. Inspira, a ousadia. Se pudesse também nunca me deitava. Anoiteceria, comigo de testemunha do anoitecer prolongado. De vigília ao teu sono, o candeeiro à média luz só para ler os teus esgares, vigiar os teus sonhos para afugentar todos os fantasmas, enquanto ao teu lado estendia a teimosia da insónia. Como se fosse o mar bravio, ondas majestosas a bater no teu peito, fusão mágica dos instantes intemporais.

Houvesse maneira de derrotar o sono, uma poção mágica de não carecer do sono, e nunca anoiteceria. Não anoiteceria com o sinal dos sinos que dobram pelo sono que espera embrulhado nos lençóis. Os lençóis seriam como os musgos acamados nas rochas que recebem a cólera das ondas. Altares singelos onde repousam as enraivecidas vagas, os suaves refúgios que as aquietam, domesticam a fúria com que se fazem a terra firme. Musgos dóceis que desfazem as intrépidas ondas que ali se fazem mar temporão. Ali, onde o mar tempestuoso tem o seu anoitecer, à espera que outras ondas tardias venham repetir-se no processo infindável. Sempre partidas pelas rochas que se entregam de peito aberto e envolvem as ondas naquilo que delas fica, uma espuma esquálida que se tinge com o nada das forças esgotadas nos rochedos.
Anoitece, ali e em todo o lado, de mil e uma formas e cores. Onde quer que anoiteça, a escura luz que se põe tem o perfume das candeias que os teus dedos alumiam, quando se passeiam pela minha pele. Pode anoitecer de todas as formas e cores, que bem forte bate a luz que irradia dos teus olhos, mais forte que mil sóis. Com a certeza de que nunca anoitece, mesmo quando o sol se deita detrás da linha do horizonte.

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