19.7.06

A morbidez do voto


Descobri mais uma razão para ser abstencionista: o voto é uma coisa mórbida. Quando se exerce o direito de voto, o dito cujo é colocado numa urna. É a urna que empresta a conotação mórbida ao acto de votar. Porque não se convencionou chamar outra coisa ao receptáculo onde são depositados os votos dos devotos eleitores? Afinal a democracia não é uma paleta multicolor. Tem o negro como pano de fundo. Um regime enlutado.
Pensando bem, tem lógica chamar urna ao sítio onde cidadãos conscientes se libertam do seu dever de voto (dever ou direito?). É a lógica da democracia representativa. Apenas escolhemos um parlamento, de onde resulta a escolha de um governo que faz as escolhas por nós até sermos chamados novamente a votar. No longo hiato entre dois episódios eleitorais, os cultores da democracia representativa ensinam, nos manuais, a inevitabilidade de nos resignarmos à vontade dos escolhidos. É para isso que eles foram escolhidos. Nem que, entretanto, façam escolhas que contrariam as promessas que foram o cardápio que atraiu a maioria dos que se deram ao trabalho de depositar o voto na urna.

Não vou discutir os méritos e deméritos da democracia representativa. Nem trazer para a discussão as alternativas credíveis – que as ilegítimas (ditaduras) estariam sempre fora da equação. Regresso à morbidez do voto. Com a dupla conotação que a expressão encerra. Primeiro, o voto é mórbido porque ao ser depositado na urna se sujeita a comparações infelizes: são os mortos que jazem nas urnas, antes de serem sepultados no cemitério. Quando é dia de votar, os votos meticulosamente dobrados em quatro ficam umas horas em salmoura no seu leito fúnebre. Quantas vezes terá o eleitor saído da mesa de voto imerso na dúvida pela escolha que acabou de fazer? Quantas vezes eleitores arrependidos não terão querido recuar, reentrar na sala onde votaram e pedir para lhes devolverem o voto? Amiúde esse arrependimento demora, mas acontece. Quando os governos começam a governar espezinhando promessas solenemente anunciadas em campanha, levando quem os escolheu a perder-se no fumo fátuo do arrependimento.

Quem está morto não pode ser resgatado ao seu túmulo. É da ordem da natureza. O mesmo acontece com os votos acumulados nas urnas. São cadáveres inertes a partir do momento em que uns atrás dos outros vão subindo em camadas na hermética e negra urna. Com um simbolismo adicional: a democracia esgotou-se naquele momento em que o voto foi depositado. Apetece glosar uma imagem: o voto pulsa de vida enquanto o boletim está nas mãos do eleitor. Enquanto demora os instantes necessários para escrever a cruz que exibe a sua escolha. Enquanto está preso às mãos do seu detentor, o voto vive. Assim que é transferido para a urna, o voto deixa de pertencer ao titular. Passa a ser património da democracia. Mas entra no seu decesso. Pela irrecuperável essência. E o eleitor sai da mesa de voto com a consciência que só é chamado a pronunciar-se quatro anos mais tarde. O voto perdido na miríade de boletins acumulados nas urnas representa a morte do eleitor enquanto agente activo da democracia. Daí em diante passa a ser um agente passivo, sem escolha, sem capacidade de influir nas decisões.

Há outra dimensão mórbida do voto. Nas horas em que estagiam nas urnas, os votos encarnam o velório da democracia. Do funeral, horas ou dias depois, virá o escol dos eleitos com a incumbência de mandar. Da morbidez do voto emergem fantasmas empossados na tarefa de conduzir a nau. São mortos vivos, por vezes reincarnações de políticos falhados que insistem num segundo fôlego, teimando em adiar o decesso da sua carreira política. Só um acto mórbido como o voto possibilita a ressurreição destes cadáveres políticos. Dirão os entusiasmados adeptos da modalidade: é a vontade do povo que assim o permite, respeite-se a vontade do povo. Aqui havia lugar a resposta politicamente incorrecta, seguida de acusações de elitismo inconsequente ao autor das palavras.
Não é por essa discussão que vou. Insistir, apenas, que tudo isto tresanda a morbidez. O voto depositado nas urnas, como os cadáveres humanos o são, e a levitação de cadáveres em milagrosa ressurreição, fadados para serem timoneiros. A quem a morte repugna em todas as suas facetas, este processo deixa um travo de desconforto. Perceber que sou governado por cadáveres retirados da tumba por um processo que consiste em depositar votos em urnas. Excessivamente fúnebre.

1 comentário:

Rui Miguel Ribeiro disse...

O post encerra muitas verdades, mormente o carácter efémero e sincopado no tempo do exercício activo de participação política dos cidadãos e o aparentemente irremediável diferencial entre os programas/promessas eleitorais e a actividade governamental.
A primeira devia ser mitigada reforçando a componente participativa da democracia, em prejuízo da representativa, com o recurso ao instituto referendário.
A segunda só se pode resolver com a apresentação de reais alternativas políticas nas eleições, que ultrapassem a volatolidade da mera escolha de figuras (ou figurões). Também ajudava se os eleitores fossem além da responsabilização emotiva dos eleitos e aplicassem os tão em voga critérios de avaliação.