29.6.06

Ver a publicidade como se fosse um puritano

As cervejeiras não poupam em imaginação (e em dinheiro) nas campanhas publicitárias. Chegado o Verão, quando o calor aperta e convoca a dessedentar com um copo de cerveja, a publicidade à bebida ganha um protagonismo ímpar. Na publicidade, a imaginação é a palavra-chave. Para o bem ou para o mal, pois há campanhas que tresandam a mau gosto, a antítese do que deve ser feito para fidelizar consumidores.

A mais recente campanha da Super Bock desperta no consumidor o imaginário do Verão no seu melhor: a praia, as meninas que passeiam no areal corpos bronzeados e secos de adiposidades. A imagem é sugestiva. O calção vermelho esconde uma esbelta modelo com as medidas certas. Os slogans fazem o resto no chamariz publicitário: “até a abertura é cool” e “aberta a novas experiências”. Há qualquer coisa de sublime na mensagem, sobretudo quando ela se associa à imagem veiculada. E como vivemos numa era em que é fácil esquadrinhar teorias da conspiração, quando vi as imagens ocorreu-me ensaiar a reacção de dois puritanos bem diferentes, mas ainda assim irmanados na denúncia do abjecto (para eles) anúncio. O primeiro puritano é um rato de sacristia, penhor da moral e dos bons costumes, guardião da assepsia católica. O segundo puritano é uma exacerbada feminista.

Diria o rato de sacristia vindo das catacumbas da Opus Dei:

E vejam, irmãos, como este anúncio da cerveja é uma tentação demoníaca. A sugestão de todos os prazeres carnais, como se a entrega a esses prazeres fosse a realização suprema de um homem. Desvalorizam-se os misteres da alma. Que um homem goste de acariciar a sede num copo de cerveja em dia de calor, decerto Jesus Cristo não se oporia. Que matar a sede traga para o imaginário corpos femininos em trajes menores, ainda por cima em poses sugestivas que remetem o imaginário de homens com hormonas aos pulos para aquilo que nós sabemos – mas que a nossa Opus manda reprimir, nem que seja com as flagelações corporais – isso é intolerável.

E vejam, irmãos, como as mensagens dos publicitários são tudo menos inocentes. Quando nos entra pelos olhos o calção vermelho, lá está, é a cor do demo, o vermelho infernal que denuncia a impureza da entrega aos prazeres da carne. As nádegas (rabo é palavra proibida…) da menina ligeiramente emproadas para trás, e vistas por trás, imagem tão inocente como é o anti-líbido de uma freira escondida nos seus trajes monásticos. Como se as imagens não falassem mais que mil palavras, estas vêm ainda desajudar mais.

Quando os publicitários de serviço a esta tenebrosa causa assinam mensagens como “até a abertura é cool”, percebe-se onde querem chegar. Podem dizer que a minha mente é um labirinto escabroso, sempre a ver o mal onde há apenas a ligeireza de inócuas mensagens. Não caiam na esparrela, irmãos. Quando dizem que “a abertura é cool” e olham para as nádegas (não podemos dizer rabo…) suavemente emproadas para trás, o que vos ocorre? Quando se fixam nessa imagem sugestiva e lêem “aberta a novas experiências”, digam, irmãos, se o vosso instinto não sugere que o calção vermelho faz as vezes de cápsula de uma garrafa de cerveja gelada, mesmo a pedir para ser aberta. Que é como quem diz, o calção está mesmo a pedir para ser despido, desnudando as partes do corpo da menina que, por pudor, não ficaram expostas ao bronzeado solar.

Por isso, irmãos, protestem de peito aberto, vozes ao rubro, contra esta diabolização do consumo. Bebemos cerveja sem precisar que nos forneçam o engodo de meninas esculturais. A cerveja não tem nada a ver com os prazeres carnais. Porque a tolerância de Deus não se concilia com os prazeres proibidos. Por isso, irmãos, boicotemos a Super Bock. Até que a empresa ganhe vergonha e deixe de nos confundir. Já basta o calor do Verão para nos atormentar, mais as mulheres que vêm para rua escandalosamente pouco vestidas, para nossa mortificação interior. Não precisamos que a Super Bock incendeie mais o tormento que é o Verão para estes servos do Senhor
”.

A retórica da segunda puritana – a feminista empedernida – é mais singela:

É nestes pequenos sinais que se confirma a desigualdade de sexos que persiste na nossa sociedade. O corpo feminino é instrumentalizado até para coisas sem relação aparente com o corpo de uma mulher. Sabemos que o protótipo do consumidor de cerveja é o homem marialva que continua a acreditar que a mulher foi feita para servir os seus caprichos. Talvez isso explique a associação da imagem de um corpo feminino ao consumo de cerveja. Até porque esta homenzarrada é como os cães: os que mais ladram são os que menos mordem. Quando estão com meia dúzia de cervejas no bucho, vomitam um extenso catálogo de piropos que soam ao que há de mais execrando para a dignidade da mulher. (Se se esqueceram, convém lembrar que a mulher também tem dignidade.) Se fossem chamados a passar da teoria à prática, era um deserto de ideias…

Aqui no movimento feminista, propomos às nossas simpatizantes que remetam os seus companheiros à total abstinência se eles não se recusarem a praticar a abstinência de Super Bock. A mudança é feita destes pequenos gestos. Somados são grandes empresas que mudam a agulha do mundo. Para os publicitários, que sabemos estarem em conluio com o grande capital (a excrescência do império masculino que teima em dominar a sociedade), perceberem que somos uma força mobilizada e que temos a força para boicotar os produtos que eles publicitam ao arrepio da igualdade dos sexos.
Restava saber se uma feminista lésbica teria a mesma reacção exacerbada perante o spot. Ou se, embevecida pelo corpo da menina, deixaria o silêncio falar mais alto…

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