23.6.06

"No longo prazo estamos todos mortos" (John Maynard Keynes)



Esta foi uma das frases gravadas no epitáfio de Keynes, o economista que tarda em sair de moda. Navegação à vista, empurrando as consequências de decisões tomadas hoje para daqui a umas décadas, quando o endividamento de hoje começar a ser pago pelas gerações de amanhã. É o esteio da maneira de governar de um grande arco de políticos, toda a esquerda sem distinções até ao centro-direita que se deixa deslumbrar pela obra faraónica quando ocupa o cadeirão do poder.

Entre nós, Keynes tem afamados discípulos entre os economistas. O actual presidente da república, por exemplo, nunca se desprendeu dos quadros mentais legados por Keynes, quando ensinava nos bancos da universidade e quando governou durante dez anos. Ainda agora, quando lança uns palpites sobre o caminho certo para entrarmos nos trilhos, a sua cabeça continua dominada pelo pensamento keynesiano. Os que não se revêem nesta escola do pensamento económico costumam ser mimados com o (no entendimento dos críticos) ultrajante rótulo de “neo-liberais”. Nos dias que correm, ser “ultra-liberal” – ainda obscuro conceito convenientemente usado pelos guardiães da ortodoxia de Keynes e outros arautos da esquerda dura – é uma espécie de sarna, a fonte de todos os males de que o mundo contemporâneo padece.

Não há tempo para desfiar o longo rol de antinomias em relação a Keynes. Concentro-me na frase que dá título a este texto. É em homenagem a esta divisa que sucessivos governos fazem obra pública, endossando a factura para as gerações futuras. Constrói-se hoje, quantas vezes obra desnecessária, sumptuosa, desenquadrada das necessidades da colectividade, o espelho de como teimamos em viver acima das possibilidades. A colectividade tem prerrogativas que estão vedadas aos indivíduos. Pode-se endividar e remeter os encargos para as gerações que hão-de vir. A justiça inter-geracional é assunto de somenos importância. As gerações futuras também vão beneficiar da obra feita pelas luminárias que hoje assinam as autorizações para gastos faustosos. Lamenta-se que ninguém tente inquirir as gerações futuras se elas estão de acordo: com a obra decidida pelos seus antepassados, e pelo encargo que lhes é endossado.

Quando Keynes disse que no longo prazo estamos todos mortos, disse-o com a convicção que no presente interessa apenas olhar àquilo que a vista alcança. Que devemos menosprezar a programação antecipada dos efeitos. Mesmo que no plano pessoal acredite na insensatez de viver hoje a pensar no que podemos fazer a longo prazo – porque um acidente de percurso pode desfazer, num ápice, os planos laboriosamente gizados – o mesmo princípio não pode ser válido para a governação de todos nós. Há uma importante diferença de escala. As minhas decisões individuais têm influência no agregado familiar, só muito residualmente alimentam efeitos no todo que somos. As decisões do todo, na forma dos governantes que empossamos através do voto, afectam o todo no presente e deixam marcas indeléveis para aqueles que ainda não nasceram mas serão chamados a suportar os encargos das decisões de hoje.

Em tempos, numa discussão acerca de escolas do pensamento económico, tentei ilustrar a antipatia em relação a Keynes demonstrando que ao Estado é permitido o que é proibido aos particulares: o endividamento com factura endossada às gerações futuras. Do outro lado, a contra-argumentação: se o investimento de hoje é feito com proveito para as gerações do amanhã, faz sentido que elas sejam chamadas a pagar um preço pelas decisões que hoje tomamos e que, no futuro, as vão beneficiar. Se assim é, afinal Keynes também se preocupava com o longo prazo, deixando-o (e aos seus defensores) numa encruzilhada: sempre é verdade que no longo prazo estamos todos mortos, mas esse não deixa de ser um argumento usado por Keynes (e pelos seus cultores) para defender a generosidade gastadora do Estado.

Passando por cima desta incoerência dos keynesianos, há outro aspecto que conta para contrariar a lógica desta escola: é verdade que, como indivíduos, também nos endividamos; até é verdade que nos endividamos até ao tutano, fruto da atracção consumista que nos aliena nos prazeres cada vez menos proibidos do desditoso capitalismo. A diferença é que as dívidas dos indivíduos não passam para os descendentes. As dívidas que a colectividade contrai estão contratadas a longo prazo, um cutelo sob a cabeça das gerações futuras quando elas acordarem para a vida e começarem a pagar impostos.
Percebo que a esfera individual tem diferenças em relação à colectividade. Só não consigo perceber que nos livros venha a ideia de que a colectividade deve ser o penhor das virtudes de cada indivíduo, e depois lhe sejam atribuídas prerrogativas que entram no domínio da impossibilidade para a esfera individual. Não é verdade que o Estado deve dar o exemplo? Dão exemplo de empurrar para os filhos e netos o pagamento da nossa dívida pública. Especulemos: e se cada indivíduo pudesse fazer o mesmo? No fundo, estaria a dar cumprimento à sentença de Keynes: no longo prazo estamos todos mortos, o mote para a desresponsabilização de todas as nossas decisões.

4 comentários:

Anónimo disse...

Boa noite,

Embora não seja keynesiano, acho que este artigo devia explicar (sendo que não explica) porque é que o autor pensa que uma política de investimento público que procure construir uma "espinha dorsal" para economia produtiva não é uma boa política. É que eu não percebo onde é que está o problema.
Aliás, há coisas muito importantes das quais uma economia forte precisa, mas que nem sempre são as mais lucrativas. Quer dizer, elas até são lucrativas, mas não a curto prazo! O efeito precisa de alguns anos para ser sentido. Um investimento estatal no serviço nacional de saúde, na educação, ou mesmo na indústria pesada pode ser muito importante para dar ao país algumas das coisas básicas de que precisa para se desenvolver.

Sobretudo, é melhor não esquecermos que as políticas keynesianas resolveram a grande depressão (é claro que sem as lutas dos trabalhadores elas não tinham ido para a frente, mas concentremo-nos na parte intelectual da questão), e reinaram na Europa e nos EUA até ao final dos anos 70, ou seja, duraram 40 anos. Pelo contrário, uns meros 20 anos depois dos grandes programas de privatizações terem começado em Portugal, a economia está de rastos.

E já que se fala em ortodoxias, é bom lembrarmos que o neo-liberalismo (tal como o nome indica) é uma escola de pensamento económico que recupera as ideias liberais que tiveram a sua hegemonia na Europa durante a maior parte do século 19 e foram derrotadas a favor de Keynes na época de Grande Depressão. Por outro lado, o Keynes (embora não tanto como Marx) simboliza a criatividade e a inovação. Os "ortodoxos" são claramente os neo-liberais, os neo-clássicos e os laissez-fairistas, porque são mais antigos e mais dados a seguir as regras de classe da sociedade (capitalista) que temos...

Prossigo lembrando a natureza dialéctica disto tudo. No tempo do Durão Barroso, dizia-se muito que "as gerações de hoje pagam a crise, mas daqui a uns anos vamos estar muito melhor". Quer dizer, estava-se a empolar o longo-prazo. Acontece, porém, que não é só o longo-prazo que conta, já para não falar que a evocação do longo prazo é muito utilizada para fazer demagogia acerca das medidas presestes, acalentando esperança num futuro de prosperidade que nunca chegará. Por isso, é bom que por vezes se diga claramente: queremos resultados JÁ! Podem até nem ser resultados muito animadores, mas queremos algums coisa já. Mais tarde, se se verificar que se está a dar demasiada atenção ao curto-prazo (o que TAMBÉM não é bom!), podemos e devemos então chamar novamente a atenção para o longo-prazo. Isto, porque a luta pelo futuro da humanidade é de natureza dialética, e não há verdades absolutas.

Agora tenho de ir dormir!

Epi.

Anónimo disse...

As duas coisas interessam, meu caro. Longo prazo e curto prazo também... Temos a curto prazo que descobrir quais as melhores acções para fazer avançar as lutas de longo prazo. Levando em consideração o contexto presente. Em confrontação com as condições específicas do momento. Tudo isto é ABC, para quê complicar?

Epi.

Antonio Maciel disse...

No texto fala que "O actual presidente da república, por exemplo, nunca se desprendeu dos quadros mentais legados por Keynes, quando ensinava nos bancos da universidade e quando governou durante dez anos" Não entendi. Que presidente tivemos que foi professor universitário? Fernando Henrique foi professor, mas governou oito anos e não dez.

O texto é de 2006, mas na época o presidente era Lula, que nem mesmo tinha grau superior...

PVM disse...

Caro António Maciel: o texto refere-se a Portugal e ao seu atual presidente da república (Aníbal Cavaco e Silva).