21.4.06

A recriação da ciência

Conheço uma personagem que defende em voz alta que, nas universidades, o talento é mais importante que a competência. É o mote para explorar o abastardamento da ciência que o presente conhece. A democratização do conhecimento exportou-se para a universidade. Tudo e mais alguma coisa é elevado ao altar do conhecimento científico, com a passadeira estendida para cursos, licenciaturas, mestrados, até doutoramentos. A relação causal é cristalina: porque a competência foi ultrapassada pelo “talento”, verifica-se a enxurrada de “novas ciências” com acolhimento nas universidades.

Vou começar pela tontice do “talento”. Ponto de partida: nada contra os talentos. Podem-se exprimir de mil e uma formas. Nas artes, são a pedra de toque. No meio universitário, a sobrevalorização dos talentos e o amesquinhamento das competências cheira-me a elogio da preguiça, ao triunfo dos que não conseguiram singrar no reino das “competências tradicionais”. Estes “artistas” ambicionaram vegetar numa universidade. Tanto porfiaram que conseguiram vencer: barrado o caminho numa área do saber – por engarrafamento de massa cinzenta –, foram fautores de uma recriação da ciência, para que os seus “talentos” (dir-se-ia, com indulgência, “competências alternativas”) fossem acolhidos na casa universitária.

Quando qualquer saber, qualquer conhecimento comezinho, invade a universidade e conquista o rótulo de ciência, rendo-me às evidências: o talento derrotou a competência. Quando a astrologia merece honrarias de conferências universitárias, ou a contabilidade ascende ao patamar de mestrado, ou esoterismos vários têm lugar reservado nas universidades, fico inquieto. E atónito, com a profusão de pós-graduações inventivas que se multiplicam nas universidades. O diagnóstico é lapidar: o talento venceu, a ciência foi recriada, diria, reinventada. Este termo é o que descreve melhor o destempero. É a invenção da ciência, como se bastasse a vontade de meia dúzia de crânios tresmalhados das áreas tradicionais para fazer nascer uma nova ciência. A ciência inventada, no que de menos agradável encerra a palavra “invenção”.

Qualquer dia, doutoramentos sobre a vida sexual dos sapos, sobre os hábitos alimentares dos zulus da Suazilândia, sobre o misticismo do fado de taberna, sobre a arte de exterminar pulgas em animais domésticos, quem sabe, sobre a arte maior das tunas. Alguns dirão que é sintoma de intensidade intelectual, um fervilhante clima universitário. Dirão que a multiplicação de novos saberes, elevados à condição de ciência, é prova da democratização da ciência. Deixará de estar hermeticamente fechada num armário bafiento, presa às regras manipuladas por um escol de iluminados que se fechou numa torre de Babel, impenetrável. Que a ciência se libertará desses espartilhos e ficará acessível a todos, alunos e docentes.

O argumento da democratização da ciência não me convence. Cai na armadilha de confundir conhecimento com ciência, quando nem sempre os dois coincidem. Ou será que os conhecimentos de futebol de Gabriel Alves, embrulhados num discurso com cambiantes intelectualóides, farão dele um catedrático de qualquer coisa? Por este andar, um dia destes existirá em catedrático dentro de cada mortal. Não estou convencido que seja coisa boa. Já não se falará de democratização da ciência, apenas de abastardamento da ciência.

Que fique claro que não sou o velho do Restelo que defende a peito o conservadorismo dos saberes universitários. Apenas me custa que do oito passemos ao oitenta – eu diria ao oitocentos, para tornar o retrato mais fidedigno. Temo que a universidade deixe de ser um lugar de excelência e venha a ser invadido por charlatães que se convencem – e convencem uma audiência que vai engrossando – que são especialistas num conhecimento que transformam em ciência. Também aqui se coloca o problema do ovo e da galinha: ou saber quando deve, e porquê, um conhecimento entrar nos alvores da ciência. Em retrospectiva, a economia só muito tarde se emancipou como ciência e domínio universitário.

Perturba-me verificar que esoterismos, astrologias e outras coisas ditirâmbicas começam a penetrar nas universidades. Não posso fechar a porta à possibilidade da sua vulgarização daqui a umas décadas. Então, adivinho (e especulo), a universidade terá deixado de ser o que tanto ambicionou. A excelência, apenas uma ténue luz no fim do túnel que encerra o tempo passado.

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