7.4.06

Fidúcia policial

A pergunta: devemos confiar na polícia, nos agentes da autoridade? A interrogação nada tem a ver com o possível envolvimento de alguns agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) num esquema de imigração ilegal. Em bom rigor, descobertas como estas motivam a interrogação. Quando os males vêm de dentro da instituição que garante a segurança pública, quando o crime fermenta no próprio organismo policial, a incerteza dá lugar à insegurança.

Lembrei-me da pergunta quando vi o ar de pouca confiança de um alto responsável local do SEF. Se o visse na rua antes de o ter visto na televisão, diria que tinha mais pinta de bandido que ar de polícia. Sei que os estereótipos são armadilhas, que frequentes vezes a cara não condiz com o interior da pessoa. Mesmo assim, não se podia ter escolhido alguém bem amanhado para cargo que implica uma sensação de confiança? Há outro aspecto que contribuiu para a má impressão do alto funcionário: talvez por incomodidade de quem falava para uma câmara de filmar, intimidado com a ideia de aparecer nas televisões de uma pequena multidão, esteve mal nas declarações. Se a confiança das autoridades policiais depende da tranquilidade da mensagem, aquele senhor foi a antítese da exigência. O que acentuou o ar pouco “policial” que exteriorizava: o nó da gravata negligentemente desapertado dois dedos abaixo do último botão da camisa, botão desapertado como se estivéssemos num dia de canícula insuportável. (A escola Mourinho – na estética do vestuário – chegou à polícia?)

Outro exemplo. Há dias estava num restaurante take away. Abastecia-me para o almoço. Ao chegar ao local, havia uma fila de meia dúzia de pessoas. Estava lá um agente da PSP. Não era perceptível se encerrava a fila ou se estava deslocado dela. O homem que seguia à minha frente parou à porta do estabelecimento. Na dúvida, perguntou ao polícia, com delicadeza, se estava na fila. Abrutalhado, o agente ripostou com um seco e antipático “sim” – com aquele ar de quem diz nas entrelinhas “o que é que acha?!” Exibia todo o incómodo por ter sido abordado por aquele homem que não percebia se o senhor agente estava ou não na fila.

Nos minutos que ali estive, só discerni prosápia e arrogância do polícia que aguardava pelo almoço encomendado. Pus-me a pensar: um polícia antipático, arrogante, com tiques cabotinos não é de fiar. Para descompor o quadro, quando chegou a vez do agente da PSP ser servido, as pessoas no local foram testemunhas das garrafas de vinho que levou para acompanhar o repasto. Sempre ouvi dizer que em serviço não se bebe (álcool). Polícias etilizados são ainda menos de confiar.

Terceiro episódio. Das recordações olvidáveis do estágio de advocacia, dois plantões no tribunal de instrução criminal. O mero pró-forma de alguém aparecer como advogado dos detidos levados ao juiz, que decide se aguardam julgamento em liberdade ou em prisão preventiva. Cruzei-me com alguns agentes que andam na rua à paisana. Uma vez fiz uma viagem até aos confins do concelho de Gondomar (confirmando que o fim do mundo pode estar a vinte quilómetros da grande urbe) na companhia de dois destes agentes. Figuras com aspecto pouco recomendável. Sei que a função – andarem infiltrados no meio da banditagem – exige que se pareçam com quem querem prender. Para além do aspecto deslavado, foram pormenores de comportamento que ficaram na retina. Sedimentando a impressão da pouca confiança nesta gente.

Exemplo final: o destino dos estupefacientes apreendidos pela polícia. Com alguma assiduidade, a polícia convoca conferências de imprensa onde garbosamente exibe o arsenal de drogas capturadas ao cabo de uma longa operação que culminou no desmantelamento de uma rede de traficantes. Mostram a droga, as armas, o dinheiro, os automóveis de alta cilindrada que apreenderam aos meliantes. Fim da história. Eu gostaria que fosse apenas fim de um capítulo. Gostaria que mostrassem imagens do capítulo seguinte: o que fazem com toda aquela droga. Por imperativos de transparência: a droga é toda incinerada (descontando uns trocos que ficam para utilização médica e para instalar a dependência nos cães treinados para descobrir drogas)? Não haverá uns desvios pelo caminho? Como se explica que as drogas circulem nas prisões, se as visitas aos prisioneiros são passadas a pente fino?

Porventura estarei a ser ingrato com a polícia, com os polícias. Porventura influenciado por umas quantas árvores que não fazem a floresta. Tento ir em busca da imparcialidade da análise. E a imagem que persiste é a dos polícias que inspiram pouca confiança, que abusam do complexo da farda, da autoridade que não o sabe ser. De uma polícia que não cativa confiança. No limite, a sensação de que somos felizardos: com esta polícia, a criminalidade que temos é um marasmo.

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