1.3.06

A força da poesia

É na poesia que as palavras falam com voz diferente. Carregada de emoção, por vezes, com a singeleza tão difícil de alcançar, por outras, no travo inebriante das palavras tecidas nos versos. Haja musas inspiradoras, ou apenas os olhos de um observador que transforma as coisas mais banais num poema carregado de beleza, ou ainda a revolta destilada pela pena nos versos acotovelados num poema.

É na poesia que as palavras encontram um encanto diferente. Vem da liberdade da poesia um significando diferente das palavras que ecoam na alma do poeta. Palavras que se vão soltando pela calada, febris, à espera da sua moldura final, o poema. Não interessa que seja portador de uma mensagem. Basta a arquitectura das palavras, na dança intrigante que as coloca numa ordenação quase mística. A poesia está para as palavras como a cabalística está para os números. É a cabalística das palavras. Sonhos ou paixões, desejos ou arritmias da vida, os afectos e os desamores, cáustica ironia ou exercícios de surrealismo, tudo se põe a jeito da poesia.

Através da poesia, as palavras ganham uma musicalidade arrebatadora. Os artesãos da palavra usam-na com perícia, descobrem aquela palavra que dá sabor musical às estrofes. Fazem do poema uma melodia de palavras que apetece entoar até à exaustão. Não das rimas, porque nas rimas cerceia-se a poesia fácil, a rima esforçada apenas para apoderar um sentido artificial ao poema. Nem da métrica rigorosa, para não encerrar a poesia num espartilho matemático, como se houvesse que obedecer a convenções tiranas que asfixiam o atrevimento das palavras. A poesia é musical quando as palavras se sucedem ao ritmo que sai da criatividade do poeta. Ora lento, ora frenético, compassado pelas pausas que dão sentido à poesia, os silêncios que moldam o pulsar de um poema.

Poesia alimento, refúgio num poema aberto numa página aleatória. Para enfatizar a liberdade da poesia, obras que não exigem a leitura de fio a pavio, como na literatura em prosa. Só dedilhar à sorte uma página e encontrar um poema que dá sustento a quem o procurou com avidez. A poesia tem o seu zénite na declamação. Ler um poema, ainda que mentalmente seja ensaiada a declamação, é diferente de o ouvir declamado por mestres dessa arte que dá toda a expressão à poesia outrora descoberta por espíritos maiores. O poema ganha então uma vida própria. Como se a arte da declamação conseguisse sublimar o espírito do poeta, na poesia vibrante, ofegante, a poesia que respira através das palavras sabiamente entoadas.

Falha dos pedagogos militantes, que nunca tiveram a sagacidade para descobrir a poética nas suas incontáveis reformas curriculares. Há poesia esparsa nas aulas de português. O que falta é a poesia como saber autónomo, emancipado da literatura geral, das conveniências do ensino do português. Poesia como currículo separado, ou como actividade paralela. E cultores da poesia, que tenham a sabedoria de despertar a curiosidade das crianças para os mistérios da poesia. Ou talvez não. Temor que a massificação da poesia seja sinónimo do seu abastardamento, de uma popularização que seria a lancinante espada na arte de fazer poesia.

Deixá-la estar como é: um segredo bem resguardado, uma arte que não consegue ascender ao púlpito das letras. Pejada de linguagem hermética, ou fremente da simplicidade das palavras – mister tão difícil –, a poesia é o ancoradouro onde busco o repouso do mundo que me cansa. Uma concha protectora das coisas desavindas que desfeiam a vida. Não é um mundo de faz de conta. Apenas a arte sublime de transformar em belo mesmo as descrições mais horrendas. Com o poder da palavra escolhida na sapiência dos exercícios meticulosos, a poesia, a cirurgia das palavras que ecoam no desassombro da forma poética.

Oxalá tivesse a sensatez de mais vezes encontrar refúgio no perfume da poesia. Não fora o esquecimento da poesia, ou a vida frenética (que nem sempre o é) como escusa para coisas esquecidas na agenda dos projectos, e decerto os sentidos teriam cores mais belas. As cores das flores e dos frutos, a frescura do mar e dos montes, a arrepiante narrativa de um poema que liberta as palavras dos espartilhos partindo em busca da função épica do poema. Se voltasse à infância, só para responder à pergunta da praxe (“o que queres ser quando fores crescido?”), responderia: poeta. Se pudesse. Recuar no tempo. E poeta ser.

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