9.3.06

Epitáfio sampaísta

E eis que chega ao fim o consulado de Sampaio. Dobra-se a página de um presidente que foi um equívoco, como equívoco é o país que presidiu. Um esclarecimento: não tenho, nunca tive, a mínima simpatia pessoal pela personagem. É daquelas embirrações que têm uma grande dose de irracionalidade. Quando não se gosta sem saber explicar porque não se gosta. No caso do presidente que hoje passa o testemunho, dez anos de consulado desnudaram a personagem. O que era antipatia irracional ganhou as cores da razão.

No ponto final da longa página sampaísta, os comentadores andam entretidos nos balanços. Para além de serenidade e incontornável, há uma palavra cara à figura que a partir das dez horas da manhã deixa de ser presidente e que resume as análises: consensualidade. Os comentadores são consensuais nos elogios a Sampaio. Uns, mais entusiastas, ou não viessem da família política de onde ele partiu para o estrelato presidencial. Até alguns opinadores mais situados à direita afagam a personagem. Ainda não percebi com que propósito: se serão elogios sinceros, apesar de discretos e sem a exaltação dos que o aplaudem; se apenas um acto de misericórdia, como quem diz “agora que partes vou dizer bem de ti”.

Não tenho o arcaboiço para laudatórios em momentos de despedida. Nem consigo trair a impenitente antipatia pela figura; não será por estar de partida que vou passar um borrão pelas indigestões passadas. Aliás, se existe algo de bom, é a abalada de Sampaio. O presidente que sempre procurou consensos quando só avançamos se fizermos rupturas. Sempre na linha da frente como supremo árbitro dos conflitos políticos, mas sempre hesitante, nunca dando provas de ser confiável. O mais emotivo dos presidentes, relembram alguns, no esboço de uma quase hagiografia. Não foi um presidente emotivo; foi um presidente choramingas, arrebatando as simpatias de velhinhas e adeptos de comédias românticas, lacrimejando fácil quando a emoção saltava de um caldo fervente. Sampaio, imortalizado pela covardia – e quem se pode esquecer da montagem hollyhoodesca da visita a Nelas, porventura temendo que os habitantes de Canas de Senhorim lá fossem exigir-lhe o escalpe.

E depois há o Sampaio dos discursos redondos, herméticos, ininteligíveis, prenhes de incursões paralelas e inversões de marcha, frases intermináveis. Num dia destes abri uma excepção, eu que já tinha há muito perdido a paciência para escutar com atenção as prédicas presidenciais. Escutei-o e voltei a escutá-lo, no mesmo discurso, num noticiário tardio. Numa das longuíssimas frases que pontuam os seus discursos, fiz cálculos mentais: essa frase teria quinze linhas. Quinze linhas sem um único ponto final, na ilustração perfeita da langue de bois que é o sampaiês, uma espécie de dialecto que ensaia o português. (Será defeito meu: no afã de escrever frases curtas, perturbo-me quando o não consigo. Ainda que as minhas frases mais longas nunca ultrapassem um terço da dimensão média das frases do sampaiês, cheias de vírgulas e mais vírgulas, travessões e parêntesis curvos e rectos…)

Num cargo que tem pouco mais do que honorífico, Sampaio exerceu bem o papel de mestre-de-cerimónias. Na distribuição de comendas, bateu recordes. É quase como o Benfica, que procura corpos que ultrapassem a população portuguesa para se vangloriar de ser a agremiação com mais adeptos. A Sampaio faltam cidadãos suficientes para a orgia de comendas. Se o frenesim de medalhas já era nota distintiva, quando deu conta que as folhas do calendário para a despedida da sinecura rareavam entrou na fase efusiva das condecorações. Parece uma extra-unção com efeitos invertidos: ele é o sujeito ungido, agora que se aproxima o fim do mandato, mas unge os agraciados em sinal de adeus. Facilitava a função se atribuísse uma medalha a Portugal inteiro.

Sampaio conseguiu alcançar o que julgaria impensável: o pior presidente da era democrática. Pior que Soares e Eanes, é registo pouco invejável. Parte e não me deixa saudades. Já prometeu que vai continuar atento, como cidadão responsável que é, numa militância activa da cidadania. É direito que não lhe pode ser negado. Oxalá houvesse o convencimento de que é chegado o tempo de ir a banhos e termas, no repouso que é merecido apenas e só porque, finalmente, abandonou o cadeirão presidencial.

2 comentários:

Anónimo disse...

HEIL!!!

Anónimo disse...

Tem toda a razão nas críticas. Os mandatos foram pobres e sem chama e o último ano foi lamentável. Aliás, penso que Sampaio chega a Presidente por ter tido o arrojo (ou desplante) de lançar a sua candidatura antes de qualquer outro no PS e colocar o partido perante um fait accompli. Quanto aos comentadores, não se admire: em Portugal é quase proibido criticar o PR. "É o mais alto magistrado da nação", dizem. Disparate total! O PR invoca o ser eleito por sufrágio universal e directo para reforçar a sua legitimidade política; mas isso também o torna um agente político responsável perante os eleitores e sujeito ao exercício da crítica. Estranhamente, para muitos, criticar o PR parece equivalente a fazer caricaturas de Maomé!

P.S. A referência ao Benfica é que caiu mal. Como sabe, Jorge Sampaio é um lídimo sócio do Sporting e membro do Conselho Leonino. Talvez isso reforce a sua faceta "Caliméro".