13.2.06

Sitiado em casa

Uma advertência para começar: este texto é inspirado por um estado de espírito sorumbático. Uma neura de tamanho considerável. Algum fel vai ser destilado. Possivelmente, uns pós de linguagem expressivamente dura irão ser espalhados ao longo do texto.

À hora do costume, estava preparado para sair de casa para o jogging matinal. Rotina toda respeitada. Baixei à garagem. Ao ligar a ignição, nunca pensei que segundos mais tarde estivesse retido diante do portão da garagem, impossibilitado de sair. Durante o fim-de-semana o portão esteve avariado. Esteve sempre aberto. A entrada na garagem era um livre passe para toda a gente – moradores, visitantes, pessoas que moram na vizinhança e que por aqui passeiam os cães, até potenciais larápios. Um vizinho mais zeloso da segurança colectiva terá decidido, durante a noite, fechar o portão da garagem. Não podia ser melhor a ideia: a menos que haja um truque para abrir manualmente o portão, os que o desconheçam estão sitiados dentro de casa, sem poderem sair para o trabalho numa segunda-feira de manhã. Até que apareça o salvador, o diligente vizinho que nos sitiou em nome da segurança dos nossos haveres.

É nestas alturas que me ponho a pensar como será idílico viver sem vizinhos. Citadino desde a nascença, vivi sempre em conglomerados que albergam uma resma de vizinhos. Partilhar um prédio com vizinhos é uma aventura que traz amargos de boca. Alguns utópicos defendem a lógica do condomínio como a melhor forma de organização social, crentes nas vantagens da máxima descentralização. Passam ao lado do problema de raiz dos condomínios: quando vou viver para um prédio faço uma aposta no escuro porque desconheço a vizinhança. Comprar habitação sem saber quem vive no apartamento ao lado, com quem me vou cruzar todas as manhãs ao sair de casa, ignorando os atentados estetas com que serei forçado a conviver. Para o futuro estará guardada a inovação de um período experimental, habitando ainda sem móveis, certificando se a vizinhança que sai em sorte compensa a compra do novo lar.

Há alternativa. Afastar o estigma da vizinhança que partilha as chamadas “zonas comuns” que obrigam a reuniões periódicas do condomínio. Outro pesadelo, estas reuniões onde se ajuíza o fino calibre de algumas peças que se afadigam em passar uma imagem do rejeitável que o ser humano contém: indelicadeza, mesquinhez, avareza, conflitualidade genética, problematização gratuita. A alternativa existe: uma moradia que dispensa reuniões de condomínios e convivência forçada com aquelas caras que nos olham com suspeição, que esboçam um cumprimento forçado (quando nem isso esboçam), que se fazem passar por engenheiros encartados e tentam reparar mecanismos sem estarem habilitados, perturbando a vida de todos os demais vizinhos. A alternativa existe. As minhas finanças pessoais lamentam não poderem lá chegar.

Quando vi que o portão da garagem não respondia ao comando, teimando na imobilidade, saí do carro e tentei perceber se existia forma de o abrir manualmente. Estava lá um manípulo que tinha o ar de permitir abrir o portão caso a electrónica tivesse metido baixa. Puxei, com todas as forças que tenho, e o portão continuou fechado. Tentei mais do que uma vez. E nada. Resignei-me a fazer marcha-atrás. Porventura teria sido o primeiro a tentar sair da garagem. Por acaso, para nada de urgente – tirando a urgência de quem não se sente bem se falha a corrida matinal. Ponho-me a pensar se tivesse que sair de casa àquela hora por um compromisso profissional que obrigasse a viajar bem cedo. Acaso tivesse um avião para apanhar e, sitiado na minha própria garagem por um vizinho cuidadoso, o avião partisse sem mim? Terá o vizinho discernido que outros desconhecem o truque para abrir o portão (se é que ele existe)?

Um exemplo do mais puro egoísmo. Ainda que o dedicado vizinho acreditasse que estava a proteger o património de todos os condóminos, aposto que foi impelido pela protecção do seu automóvel – e, só por arrastamento, dos automóveis dos demais. Egoísmo puro, pois se ele conhece a solução para a abertura manual do portão, devia-se interrogar se os demais também a descobriram. Só lamento não saber quem foi a alma que fechou o portão e me sitiou em casa. Teria todo o prazer em a tirar do sono tranquilo para ao menos me ensinar como se abre o portão quando ele não responde ao comando.

2 comentários:

Anónimo disse...

Ouve lá, não há taxis e autocarros nessa cidade? E que tal uma corridinha pela cidade em vez do parque? Viste a coisa pelo lado errado: era uma oportunidade para fugires à rotina... e não a aproveitaste.
Ponte Vasco da Gama

Anónimo disse...

Malandrecos...
Já há alguém a aproveitar-se da minha alcunha.
Mas, tudo bem. O comentário até nem está mal de ver.
Isto de haver um pseudónimo colectivo para ironizar com o gato das botas até que é engraçado.
Estão à vontade, mas não à vontadinha. Pede-se uso parcimonioso.

Acrescento, apenas, o famoso dito popular: "Bigodeiro atado, em casa fica fechado"
Coça, coça a barriga...

Ponte Vasco da Gama