2.1.06

O ministério de saúde alerta: as festas natalícias podem causar sérios danos à saúde

É irreprimível: não consigo combater as tentações que o diabo da gula esgrime. A época natalícia corporiza um desfile de iguarias carregadas de calorias, gorduras, colesterol, açúcar em doses excessivas e outras torturas para o organismo. Todos o sabemos. E em cada natal, a cada ano novo, os olhos são levados no engodo. Da engorda. Nos anos recentes as festas natalícias saldavam-se por um alargamento de dois quilos. Este ano foi batido o recorde. Três quilos mais tarde, o momento de pôr as entranhas de molho.

As tradições não têm explicação. Respeitam-se como tradições, não se questiona a sua origem. O esplendor da antítese do racionalismo. As festas natalícias encerram uma essência tradicionalista bem arreigada. São muitos os sinais típicos da época, que mimetizamos como se autómatos fôssemos. Não interessa perceber o que está por detrás das tradições. Se esse esforço fosse empreendido, uma conclusão nada surpreendente viria à superfície: a época é de paganismo, muito pouco religiosa. Se a religião tutela a pureza do ser, espera-se que ela nos desvie das tentações da gula que mais tarde podem trazer amargos ao organismo. Guiados pelo banquete em desfile perante os olhos, a prova de que o sentido pagão derrota o sentido religioso das festas.

Agora que cada vez mais se fala do higienismo militante das autoridades, não fará sentido uma campanha de informação para os malefícios do natal? Porque, para tantos pecadores, o natal significa alambazar com rabanadas, sonhos, filhozes, formigos, migas doces, aletria, bolo-rei, pão-de-ló de Ovar e tantas outras bombas gastronómicas pejadas de armadilhas para o bem-estar do organismo. O natal é a imagem do marinheiro que navega à deriva, embalado pelos alísios que emprestam um rumo errante. Um festim de sabores a que é difícil resistir; a gula empurra para as sensações inebriantes das iguarias natalícias, sem acautelar consequências futuras – o peso excessivo que a balança acusa, as análises ao sangue que causam preocupação.

Estranho que o ministério da saúde ainda não se tenha lembrado de alertar para os perigos dos excessos alimentares do natal e do ano novo. Talvez os burocratas, eles mesmos entretidos com a degustação da doçaria típica da época, se recusem patrocinar a campanha higiénica: eles também engordam meia dúzia de quilos, não conseguem resistir ao apelo do palato, olhos que comem mais que a barriga. Haverá decerto burocrata nada filisteu, daqueles empenhados em viver uma vida asséptica, que prescindem dos valores arreigados nas tradições a que fomos educados. Um zeloso burocrata que produza um estudo cheio de cientificidade para mostrar os malefícios da ingestão de doses cavalares de iguarias natalícias. Exibindo um rol de prejuízos para a sociedade: quanto custa ao serviço nacional de saúde curar as maleitas causadas pelos desarranjos natalícios.

E se acaso a turba fizer ouvidos de mercador às sugestões do ministério, entretanto convertido à nova moda do fascismo higiénico, o plano entra na fase dois: das sugestões passa às imposições. Campanhas publicitárias ensaiam uma espécie de terrorismo intelectual, mostrando detalhes de cirurgias para curar úlceras, ou os padecimentos de quem vivia cercado por colesterol abundante e pagou a factura com um enfarte do miocárdio. Porque não, a súmula do que pode acontecer a quem fizer tábua rasa dos conselhos do paternalista ministério: uma imagem a negro, longos segundos de silêncio, debruados pela família que se despede do ignaro que, natal após natal, foi cavando a sua sepultura. Retratada no spot publicitário do ministério para amedrontar quem ainda não se tenha assustado.

Porventura este fundamentalismo higiénico ainda não terá vingado por distracção das autoridades ou pelas pressões do poderoso lobby da igreja católica. O tempo dirá se os experts do ministério da saúde não vão despertar para uma nova cruzada que lhes permite interferir com a vida de cada governado. Ou se a igreja perde os cordelinhos da sociedade, ficando o terreno desbravado para os higienistas obcecados que defendem a todo o transe a saúde pública. Para o natal começar a ser perseguido.

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