27.12.05

Um país sisudo

Era uma vez um país. Jovem democracia, outra vez entretida numa campanha eleitoral, agora para escolher um presidente da república. Um país latino, sangue quente na guelra, emoções à flor da pele. E, no entanto, um país apático. Um povo carrancudo, pouco sensível ao humor (quantas vezes não ouvimos vituperar as tentativas de humor – por piores que sejam – apenas porque “com esse tema não se brinca”). Um povo latino com viver gélido.

A colheita de candidatos presidenciais teria que emular os eleitores: tristonhos, enfadonhos, sem sentido de humor, incapacitados para brincar com as suas próprias figuras. Levam-se muito a sério. Alguns fazem-no porque os colocaram num patamar acima do cidadão comum. Um, o salvador, a versão moderna do sebastianismo perene, o fio condutor da portugalidade perdida. O outro, emproado na condição de dono da república, sacudindo a poeira de uma reforma dourada, para nos salvar do salvador. Os demais, candidatos satélites que gravitam em torno das figuras tutelares. Um ponto comum a todos eles: sensaborões, apoplécticos perante a surpresa, como a iniciativa de uma casa de apostas austríaca que é o principal patrocinador do campeonato de futebol: organizar uma bolsa de apostas sobre as eleições presidenciais.

Os candidatos não demoraram a protestar a sua pudibunda condição. Ofendidos, com maior ou menor esbracejamento verbal, em uníssono contra os seus nomes nas apostas. Todos, sem excepção, mostraram como estão mergulhados na menoridade cívica. Para além de uma confrangedora falta de humor, suas excelências reagiram como se a figura do candidato presidencial estivesse numa campânula que a coloca a cobro de intenções maléficas. Como maléfica parece ser a intenção desta bolsa de apostas…

Fôssemos uma democracia já na maioridade, tivéssemos uma cidadania plena, com direitos e também assunção de deveres, e as melindradas figuras que se candidatam à sinecura não teriam reagido como se virgens pudicas fossem, formiguinhas belicosas em defesa da honra beliscada. Houve quem tentasse demonstrar que bolsas de apostas sobre eleições existem em tantos países, quase todos eles mais “civilizados” e “avançados” do que nós. Perda de tempo. Do alto da nossa idiossincrasia, o que interessa é não ofender o bom-nome dos candidatos presidenciais, isso sim mais importante do que rivalizarmos com outros países que se dizem mais “civilizados” e “avançados”. No rescaldo, a certeza de que ficamos a perder neste campeonato.

Um candidato – o patriarca da república, quem mais poderia ser, já habituados às suas tiradas patéticas que passam incólumes – anda tão desorientado, que se saiu com uma afirmação desbragada: sentenciou que as apostas se fazem com corridas de cães e de cavalos, não com pessoas. Tantos equívocos: esquece-se que o totobola existe e que consiste em tentar adivinhar o resultado de jogos de futebol, um desporto que não envolve, de todo, cães ou cavalos…Se sua excelência não ficasse ofendida acaso lesse estas palavras, diria que a comparação que fez só desabona os cães e os cavalos!

Sem perda de tempo, a comissão nacional de eleições verteu douta ciência: que estas apostas eram ilegais, escudando-se em inúmeros pareceres de um escol de eminentes juristas – esses especialistas da hermenêutica, mestres na arte de dar pareceres que conseguem interpretar em sentido antagónico a mesma palavra. A Betandwin acabou por desistir da bolsa de apostas, não fosse ferir mais susceptibilidades. Para azar dos candidatos e dos defensores do seu bom-nome, ontem vi uma reportagem televisiva que deu notícia de outros locais na Internet que organizam o mesmo tipo de bolsa de apostas.

As autoridades começam a perceber que nada podem contra a multiplicação de bolsas de apostas onde os candidatos presidenciais se expõem aos devaneios de apostadores que não se importam de torrar dinheiro nas probabilidades dos candidatos. As autoridades, e os candidatos a darem o exemplo, deviam ter percebido que a reacção despropositada só aguçou o apetite pelo fruto que eles fizeram proibido. Cavaram a sua própria sepultura, no ridículo de quem dá importância ao que menos importa numa campanha eleitoral desinteressante para uma eleição sem importância.

Pena não termos humoristas do calibre dos que fizeram os Monty Python. Este episódio dava pano para mangas para um delicioso sketch a parodiar a disparatada reacção dos excelsos candidatos presidenciais à iniciativa da Betandwin. Isso, ou o grande Manuel João Vieira figurar no lote de candidatos presidenciais, para dar um toque de humor à coisa.

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