26.12.05

Um conto de natal (uma imagem ingénua, que se desfaz)

Um natal branco. Por um momento, enganar as leis da física e abrir uma porta ao ar polar que trouxesse um manto branco a estas paragens. Verias como as árvores se vestiam de branco, carregadas pela neve caída durante a noite. Sentirias a alvura dos flocos aspergidos suavemente, pousando no teu nariz enregelado. E brincavas, moldavas bonecos na neve deitada no chão, atiravas bolas de neve que se esborrachavam na minha cara, para teu deleite.

Resguardada no calor da lareira, recuperavas do torpor gélido que se tinha apoderado. Na televisão, os habituais filmes da quadra. As evocações da lenda natalícia, os artistas de variedades que cantam em espectáculos de voluntariado natalício, o pai natal das notícias que já vinha a caminho, montando na parelha de renas. As renas. Sabes da existência das renas pela referência natalícia, pois nunca viste nenhuma em carne e osso. Começas a questionar porque só vês o pai natal, essa barriguda figura com umas barbas farfalhudas que deposita os presentes e não se demora. Ficas intrigada porque nunca te é dado ver as renas, algures estacionadas enquanto o pai natal, carteiro muito sazonal, entra pela chaminé. Ainda por cima para se entaramelar na fuligem, o que te deixa ainda mais perplexa: o pai natal, sempre limpo, como não se suja na fuligem acumulada na chaminé?

Aprendes que o natal é uma época de concórdia. Ouves alguém dizer que se celebra o nascimento de Jesus. Outros dizem que é a festa da família. Há-de levar tempo até encontrares o discernimento para a tua escolha, do significado do natal. Na inocência da tua tenra idade, o natal é apenas uma ilusão semeada no beiral da árvore enfeitada. Enquanto vais demorando o tempo na descoberta dos brinquedos que te calharam em sorte, vês os maiores num constante vaivém entre o sofá e a mesa, perdendo-se nas doçarias da época.

Quando fores crescendo, irás perceber que o natal é diferente. Sentido que varia com a passagem do tempo que preenche a tua vida. Irás perceber que, no natal, as pessoas esquecem desavenças por dois dias. Vivem inebriadas com o espírito da quadra e reconciliam-se com elas mesmas. Esses dois dias são a amostra do que não é o resto do ano. Ainda possuída pela ingenuidade dos verdes anos, interrogas-te porque não podem as pessoas ser assim no resto do ano. Ficas sem perceber que estúpida maneira de viver é esta, o mergulho no abismo que traz as consumições e semeia a infelicidade. Se, afinal, bastava prolongar o espírito do natal pelos outros dias que faltam para chegar ao próximo natal.

Hás-de crescer, e perder a ingenuidade que te protege do mundo como ele é. Concha protectora, que só existe com a inocência da tenra idade, desmorona-se à medida que fores abrindo os olhos para o que te rodeia. Verás então que o natal é uma fantasia. Chegará o momento em que me darás netos, os teus filhos. Ensejo para reiterares os usos, a falácia do pai natal, as fantasias que preenchem o imaginário das crianças para quem a aproximação do natal é o apogeu de um ano inteiro. Resignada a remares para o lado da maré, ou a custosa factura do desalinhamento que povoa os dissabores que, com o cansaço, queres evitar.

Recuemos no tempo, até hoje. É o melhor natal que podes viver: na ininteligibilidade da quadra, apenas com a ternura dos que te são queridos. Sem amarras, nem dogmas, ou sequer ânsias materiais. Apenas os sorrisos embevecidos dos que te vêm crescer, essa, a melhor prenda que podes trocar com as pessoas que te rodeiam. Um natal de laços que mil palavras tornam inconsequente descrição. Laços que se sentem sem se descreverem, saciando a fome de um natal imemorial.

1 comentário:

Anónimo disse...

Se isto é um conto de Natal, o Benfica vai ser campeão europeu!
Não deixa de ser verdade, aquilo que escreves, mas mais uma vez, o que fica? Isto é assim tão mau? Tu, ser que promove o individualismo, que combate o "ir no rebanho", não conseguirás uma visão que te conforte?
E que tal se o Natal, para além dessa festa do comércio que se pendura no conceito de família, fosse aquilo que tu quisesses?
Eu penso assim, o meu Natal vive no meio do outro, mas é o meu. Segue os meus valores, as pessoas de quem eu gosto e sabe-me bem. Muito bem.

Ponte Vasco da Gama