24.11.05

O dilema da desidentificação colectiva

Seria incapaz de me fazer sócio de um clube que me aceitasse como tal, Grouxo Marx.

Há momentos, que se prolongam no tempo, em que apetece não sair do perímetro que se encerra dentro de mim. Momentos em que não me revejo em nada do que me rodeia. Ausente a atracção por fenómenos de massas. Um refúgio numa solidão de mim mesmo, como se a pertença a grupos fosse um exílio para dentro do meu eu. Não me identifico com o país, com os partidos, com agremiações da mais variada índole, com movimentos culturais, com religiões. Sem que soem as sirenes, porque não sinto que a bússola perdeu o norte, ou que esteja possuído pela desorientação dos sentidos que clama por introversão.

Em tempos de afastamento temporário para longínquas paragens, em que mergulhei numa solidão exigida pelo trabalho intenso, tirei as dúvidas. O meu país não é Portugal. Não é com os “portugueses” que teço os sinais de pertença. Esses sinais estão na família e nos amigos – um património incalculável, o meu verdadeiro “país”, se quiser encontrar sinais de identificação pessoal.

Preso às garras do individualismo metódico, por influências filosóficas que se foram arreigando, cresce o afastamento de grupos. A começar pela identificação nacional. Descrente na agregação forçosa que cimenta a lealdade nacional, como se cada cidadão estivesse obrigado a entregar-se nos braços do destino da nação. A bandeira não diz nada, o hino é uma melodia agreste ao ouvido, os versos uma sequência de frases sem sentido, evocativas de uma história que já foi feita e não volta a acontecer, a lembrança de uma gesta com têmpera bem diferente da que temos agora. E quando dia após dia a decepção – se é que ainda há lugar há surpresa da decepção… – toma conta de mim, por mais um desmando de governação, por mais uma impensável exigência burocrática que leva tempo, dinheiro e paciência, apetece-me a condição de apátrida.

A desidentificação instala a alergia a pertenças. Há preferências culturais na música, na literatura; movimentos estéticos e filosóficos que não renego. E, no entanto, incapaz de fazer parte de movimentos que cultivem o gosto comum dos seus membros. Estranhamente, quando leio ou ouço argumentos dos tais com quem partilho preferências, saltam em catadupa razões para desmontar as ideias veiculadas. Num rápido assomo de desidentificação, quando afinal algo me liga pela identidade de preferências estéticas.

Outro exemplo. Num país consumido pela omnipresença do futebol, não consigo escapar às preferências clubistas. Sem me enclausurar nos fervores exacerbados da pertença clubista, que isso de doenças inveteradas tem o condão de levar, mais tarde ou mais cedo, à condição de paciente de um qualquer médico. Costumo ver na televisão os jogos da minha equipa. Quando as coisas não correm bem, dou comigo a torcer pelo adversário, só para poder assumir um tom crítico e emproar a moralidade sentenciadora: “o rumo está errado, o caminho escolhido devia ser diferente”.

Sintomático da aversão por pertenças colectivas é o diagnóstico dos adeptos dos grandes clubes. Olho para o benfiquista: o paradigma do bom pai de família, ou não fosse esta a imagem incutida desde há muito, para arregimentar a legião de adeptos do clube. Incomoda-me a retórica de “maior clube do mundo” que os dirigentes, uns atrás dos outros, não se cansam de apregoar para consolidar uma grandeza fátua. Os adeptos do rival do norte, o exemplo acabado do fanatismo irracional, com exuberâncias radicais que os levam a praguejar impropérios contra o inimigo lisboeta, os incendiários que tomam o lugar dos fundamentalistas da coisa futebolística – uns verdadeiros talibãs adaptados ao contexto. Na irracionalidade da clubite exacerbada, levam a palma aos demais no seguidismo cego ao líder que personifica o que há de mais detestável.

Por contraponto com o rol de defeitos dos adeptos dos clubes rivais, sinto o espírito apaziguado ao saber que os adeptos do meu clube não são nada disto, que são matéria bem diferente, para melhor. Seria um sinal de pertença, um oásis que se distingue no longínquo firmamento, uma pista para me retirar da desidentificação colectiva que se apoderou de mim. Falso alarme: basta a ida a um estádio para ver o meu clube (coisa rara) e sentir como são, em carne e osso, os que têm em comum o gosto por aquelas camisolas. E sair do estádio com uma vontade enorme de deixar de pertencer àquele clube, por causa dos adeptos.

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