14.11.05

Efeitos especiais – o fim do cinema?

Hoje vamos ao cinema e são tantas as vezes em que uma enxurrada de efeitos especiais nos entra pelos olhos. Em sacrifício da história que se banaliza perante o império dos efeitos especiais, hoje mais ainda em moda pelas facilidades que os computadores proporcionam. A interrogação: serão os filmes abastardados pela invasão dos efeitos especiais? Ou é apenas um modismo – como tantos, temporário – que vinga na arte cinéfila?

Quando o realizador estica o cordel para o lado dos efeitos especiais, o prejuízo sente-se no argumento. A capacidade narrativa fica prejudicada pelas doses avantajadas de efeitos especiais. Quanto mais não seja, pelo tempo útil que os efeitos especiais consomem. Segundos, minutos – e quantas vezes longos monólogos de artes especiais que tratam de conferir um nota de espectáculo puro ao cinema – em que a história fica suspensa do desenlace dos efeitos especiais postos em acção pelos computadores. No fim, espreme-se o fruto e saltam uns parcos pingos de sumo. Filmes pouco sumarentos de argumento, cheios de embelezamento fictício feito de efeitos especiais que prendem a atenção.

Discutir a proeminência dos efeitos especiais na filmografia contemporânea é um terreno movediço. O pântano da subjectividade. Há os que vão ao cinema pela pura diversão. Não lhes interessa captar qualquer mensagem. Querem passar uma hora e qualquer coisa de puro divertimento. Para eles, filmes cravejados de efeitos especiais são o nirvana. Do outro lado, os que privilegiam o argumento, a mensagem captada ao longo de um filme. Para os puristas do cinema de culto, para os que elegem a cinematografia agregada à arte da narrativa, os efeitos especiais que enxameiam os filmes são uma degenerescência, uma subversão da arte que cultivam.

Por vezes assisto a filmes que têm a sua dose de efeitos especiais. Como em tantas coisas na vida, construir um mundo feito de extremos leva a análises excessivas. Ou seja, há efeitos especiais e efeitos especiais. Há filmes que são apenas efeitos especiais, sem qualquer fio condutor que permita distinguir um argumento, ou com uma história fraca que aparece subjugada ao monopólio dos efeitos especiais. E há filmes que giram em torno de um argumento e utilizam efeitos especiais como manobra de suporte, não como esteio principal. Não vou exemplificar porque a memória para nomes de filmes é terrível. Consigo-me lembrar de filmes que se encaixam nos dois arquétipos, só não consigo recordar os nomes.

Uma excepção: Matrix (todos os filmes da sequência). O exemplo acabado do filme em que abundam efeitos especiais, mas onde é notória a preocupação em fazer passar uma mensagem. Aliás, numa certa densidade narrativa, o espectador é apanhado no meio de dois fogos: ao correr do filme, é convidado a equacionar as suas certezas. Regressa atrás e tem que reconstruir o seu entendimento da história, pois novos dados exigem a reinterpretação do argumento. Sem cair em exageros – lembro-me de Eduardo Prado Coelho, com excitação, ter inquirido se a confusão entre o real e a ficção, a principal marca distintiva de Matrix, não seria imagem fiel do mundo em que vivemos – o filme é uma das poucas excepções em que existe uma combinação equilibrada de efeitos especiais e capacidade narrativa. Ainda que, nas sequelas do filme, se note um descuido na filtragem dos efeitos especiais, com alguns exageros característicos do entusiasmo dos técnicos de manipulação de efeitos especiais.

Quase sempre, os efeitos especiais emprestam uma dimensão fantástica ao cinema. Servem para mostrar uma realidade que não existe. Mostram desafios absurdos da física. São a porta por onde entram humanos transformados em super-homens. Os efeitos especiais são a adulação da tecnologia avançada que também chegou à arte cinéfila. Sacrificando os filmes que contam histórias de pessoas normais, vidas corriqueiras, na simplicidade das coisas que sabemos que se passam a toda a hora.

Se é possível pensar em dois pólos contraditórios – filmes que cultivam a arte da narração e filmes poluídos por excessos de efeitos especiais –, e se partir do pressuposto que os primeiros ilustram a essência do cinema (tradicional, se quiserem), o império dos efeitos especiais contradiz o cinema humanizado e mostra o cinema fantástico e irreal. No fim de contas, uma correia de transmissão de um certo modo de vida contemporâneo: a apetência pelo imaginário, que pulsa com intensidade quando é elevada a insatisfação com a vida real.

No rescaldo, um atentado ao cinema. A informática aumenta a qualidade do produto. A mesma informática é a génese de efeitos especiais que deixam boquiabertos espectadores enterrados na cadeira do cinema, a mesma informática que leva ao extremo o irrealismo dos efeitos especiais. Desumanizando o cinema, transformando-o num espectáculo, destruindo o que o cinema tem de arte.

1 comentário:

Anónimo disse...

"Follow the white rabit"
Estranha ou não, esta coincidência de referências e de gostos:arrepiante ao ler e sentir que valores e mensagens que se queriam tão distantes tão próximas estão.
"Welcome to the real world"