25.11.05

As certezas de João Carlos Espada

Quando leio o Expresso tenho garantido um momento de humor sublime nas crónicas semanais de João Carlos Espada. Há quem lhe tenha colado o rótulo de pateta, quando Espada se deixa levar pelos devaneios de quem se gaba de ser membro de um típico English club, onde é proibido ler o jornal sem o blazer vestido, onde se toma chá às cinco da tarde, onde se cultiva o gentlemenship, enfim, uma aristocrática forma de vida. Antros de conservadorismo, estes clubes têm uma política muito selectiva de admissão. Espada é um herói a dobrar: se nem entre os ingleses é tarefa fácil ser aceite como sócio de um destes clubes, homérica é a missão de um português que conseguiu abrir a porta da entrada.

Outras vezes, Espada delicia-nos com as suas memórias de longas conversas com vultos da filosofia e da ciência política – Popper e Dahrendorf são os mais citados. Espada é um eleito pela convivência prolongada com estas eminências pardas. E parece-me tresmalhado na sua terra, tantos os sinais de maior identificação com os usos e costumes do Reino Unido.

Estes atributos incomodam alguns dos detractores de Espada. É verdade que o professor de ciência política da Universidade Católica se põe a jeito para figura apatetada. Em mim não traz incómodo, pois não consigo deixar de esboçar um sorriso quando leio algumas das suas crónicas. É uma espécie de João César das Neves sem o cutelo do fundamentalismo religioso. Até devia nutrir simpatia por João Carlos Espada: ele afirma-se liberal dos sete costados. Não consigo: este é um liberalismo transviado, um “left liberal” que cultiva o mais puro objectivismo. Uma das suas batalhas é o relativismo, que ataca de forma impiedosa.

Na última crónica no Expresso, Espada enfatiza duas das coisas mais equívocas que, na minha modesta maneira de ver, empestam o mundo em que vivemos: a apologia do “centrão” político e o dogmatismo dos imperativos categóricos.

O cronista ensaia o enésimo elogio a Blair, o fundador da terceira via socialista – como se alguma vez um socialista pudesse conviver com liberalismo…Espada solta da cartola a apologia do centro: “o centro é (…) o vasto conjunto de pessoas que não hipotecaram o seu voto para sempre a um partido ou a uma ideologia determinada. O centro é (…) o vasto conjunto de pessoas que não vota ideologicamente, mas caso a caso. E julga cada caso nos seus próprios méritos. (…) Umas vezes julga bem, outras vezes julga mal. Mas tende a julgar menos mal”.

Nas entrelinhas, uma mensagem sublime: os eleitores que fogem do centro não têm o discernimento dos centristas, talvez uma inteligência diminuída. E ficamos a saber algo que é surpreendente para um professor de ciência política: as ideologias não contam, apenas o pragmatismo. Há uma outra forma de qualificar este voto do grande centro: o voto oportunista. Que, no caso da paróquia onde vivemos, é causa dos sucessivos equívocos que nos têm empurrado para a cauda do pelotão. Para mim, este centro é o cinzentismo. A acomodação. A percepção de uma bipolarização que encurta as possibilidades de escolha. Uma bipolarização perigosa, porque as diferenças entre os rivais (que protagonizam o espectro bipolar) diluem-se na retórica. O centro, este centro, é uma doença que condena os centristas a uma existência vegetativa. A modorra intelectual.

Por entre as tiradas que me trazem um fartote de gargalhadas, Espada consegue, a espaços, irritar-me. Sobretudo quando escreve coisas que, no seu douto entendimento, não são passíveis de contestação. As verdades insofismáveis. Não há surpresa nesta conduta, pois Espada é um feroz adversário da teoria da relativização. Ele acha que o relativismo é um cancro da civilização que tanto preza. Prefere uma teoria que objective tudo, que trace o caminho para um pensamento que, se não é único, anda lá próximo.

É por isso que escreve “(…) quando toda a gente sabe que os EUA (…) são um dos países mais livres do mundo” e assevera que “as pessoas sentem que existe uma ameaça islâmica” (destaques meus). “Toda a gente”, “as pessoas” – como quem diz, 100% da opinião é condizente com o mundo visto pelos olhos do Prof. Espada. Confusão de preceitos: o mundo tal e qual aparece na cabeça do Prof. Espada não é o mundo visto pelos olhos de “toda a gente”. Há dissensões, por mais que isso custe à mente abrilhantada de Espada. Tomar a parte pelo todo é um lamentável engano, uma maneira de distorcer a opinião seguidista que se revê nas posições de Espada.

Os imperativos categóricos causam-me espécie. É certo que todos temos as nossas ideias. Na dialéctica das ideias, há a recusa das que são diferentes das que cultivamos. Ora isso não pode ser confundido com uma postura que dá como incontestáveis as certezas de que nos achamos possuídos. Como se outras ideias não existissem, ou a existirem sejam tão absurdas que merecem ser ridicularizadas. Quando vejo os fautores dos imperativos categóricos na sua pesporrência, apetece-me enfileirar do outro lado, do lado que antagoniza as ideias dos que patrocinam os imperativos categóricos.

2 comentários:

Anónimo disse...

Quando o Prof. João Carlos Espada diz que: "toda a gente sabe que os EUA (…) são um dos países mais livres do mundo” e “as pessoas sentem que existe uma ameaça islâmica” ele refere-se apenas às pessoas inteligentes como ele. É óbvio que a estupidez geral não vê nenhum perigo no fundamentalismo islamico - até nutre uma grande simpatia por essa religião. E essa mesma gente estúpida considera os USA como uma nação sem nenhum valor. Quem pensa assim ignora o papel que os USA desempenharam na construção do dito "mundo ocidental e preferem o Islão (essa fabulosa religião).
Reflita sobre isto: 1) Acha normal uma sociedade/religião produzir tanto ódio e consequentemente tantos terroristas? 2) As sociedades islâmicas têm alguma virtude que se veja (respeitam os direitos huimanos? das mulheres? da liberdade religiosa?, etc)? 3) Interregue-se porque é que não existe uma diabolização da Al-qaeda no mundo muçulmano, como existe na Europa relativamente aos EUA? 4) Porque é que a única comunidade do mundo que não se insere no mundo civilizado (o Ocidente, claro)é a islâmica.
5) Vai sentir-se seguro quando o Irão possuir Bomba atómica, depois daquele execrável presidente ter dito que "Israel devia de ser riscado do mapa? 6) Consegue encontrar alguma justificação (inteligente) para o fundamentalismo islâmico?
Ficava aqui a noite toda, mas deixo bastante matéria para a sua reflexão.

PVM disse...

Depois da reflexão:
1. Bem-vindo às generalizações tão ao gosto dos defensores da teoria da objectivação.
2. Todas as sociedades islâmicas? Não haverá excepções? Lá está, traiçoeiras generalizações…
3. Se bem entendi: TODOS os árabes endeusam a Al-Qaeda. Curiosamente, Bin-Laden está proscrito no país que o viu nascer (também, curiosamente, aliado de conveniência – até ver – dos EUA).
4. Gosto particularmente destes trejeitos etnocêntricos: “mundo civilizado”. Não estou aqui a defender que a sociedade islâmica é melhor que o “mundo civilizado” onde o comentador pensa viver. Apenas que as sociedades são diferentes. E que, na diferença, é arriscado dizer que “nós” somos superiores a “eles”. Somos diferentes.
5. Não. Aliás, não me sinto especialmente seguro ao saber que qualquer país – mesmo os EUA – possuem este tipo de armamento.
6. Sim: um fanatismo religioso, como qualquer outro. Ou será que já não tivemos, na “civilização”, a inquisição?
Umas notas soltas, para terminar. O Prof. Espada é muito inteligente, digo eu, um simplório aspirante.
Não simpatizo com os fundamentalistas islâmicos, como me custa a simpatizar com os fundamentalistas neo-cons que dominam a administração Bush. Condeno a violência estúpida dos terroristas islâmicos, sobretudo quando atacam inocentes. Aliás, repugna-me todo o tipo de violência. Toda a violência.
O leitor continue a dar para o peditório do “choque das civilizações”, o “nós versus eles”. Espero que um dia não sucumba às terríveis consequências dessa imbecil divisão do mundo.

Paulo Vila Maior