26.10.05

Reorientação do ser: a vida é bela

Tanta é a tendência para tornar complexo o que é simples. Elevada a propensão para os arrebatamentos da emoção que sopram para outras latitudes o espectro da razão. Grandes tempestades que adornam pequenos copos de água. Aborrecimentos sobrevalorizados, conflitos alimentados, quantas vezes nascendo da simples vontade de cultivar uma boa discussão. A eito: dar importância ao que menos importa na vida. Dirigindo a vida nos eixos errados, semeando as rugas, os cabelos brancos, ou a calvície que se começa a mostrar, ainda o mau feitio que teima em vingar.

E tudo para quê? As consumições, um fogo-fátuo que consome a existência. Apetece fechar a porta aos tormentos que estão, pequenos diabos tentadores, na soleira à espera de se fazerem carregar aos ombros. Quando entram na circulação envenenam o sangue que alenta o espírito. Tingem de sombras carregadas os caminhos escolhidos, como plúmbeas nuvens que se adensam à espera que a borrasca descarregue os seus desapiedados frutos. Nada disto faz sentido. Vida desprovida de sentido esta que se anima nos desvios do bem-estar. Momentos há em que o cansaço do destempero exige uma redefinição das coordenadas.

Na bolsa dos valores, o momento para a revalorização dos atributos que norteiam a vida. Descontar o valor das coisas que agitam as atenções – os aborrecimentos, os atritos estéreis, as canseiras sem sentido, a apetência pela desconstrução gratuita. Em vez disso, olhar aos caminhos que apetece trilhar na busca de outro sentido. Sem misticismos espúrios, ou religiosidades que apenas significam um desprendimento de si mesmo. A solução está no ser que habita dentro de mim. Naquelas facetas adormecidas que andam asfixiadas pelo mau feitio dominante.

É então que exulta a busca de um significado belo para as coisas mais comezinhas. A beleza de uma ave que esvoaça com a docilidade de um voo que plana, pintando o horizonte com a graciosidade do seu voo. O oceano que sussurra os segredos guardados na imensidão das águas azuis que vêm encontrar descanso no areal. As árvores que se renovam num ciclo que se repete mas que jamais é cansativo. Contemplar o amanhecer no alto de uma colina, ver como lá em baixo se forma uma neblina que se adensa com o caminhar da manhã. Procurar a brisa refrescante das águas de um ribeiro, que se encaminham na sua celeridade para a foz que as vê desaguar no imponente rio. Os cães, os gatos, toda a passarada que relembra que o humano não está sozinho neste mundo. As artes, as que são escolhidas pelos parâmetros subjectivos da estética, sem dar lugar aos maus fígados que desmerecem outras artes que estão nos antípodas dos critérios estéticos que me conduzem. E as letras, a magia das letras que se ordenam com um sentido, empurradas pela enxurrada de sensações, melodias que se tecem com o som que ascende do mais profundo do ser.

As pessoas. Habitantes de um mundo partilhado, exigência de compreensão. Excessos críticos levam a lado nenhum. Não vou dizer que passe a olhar para os desmandos de comportamento com a bonomia que a introspecção poderia motivar. Não há tempo, nem lugar, para mudar de campo com um simples esgar da alma. O que importa é passar ao lado das misérias que compõem o ramalhete do lugar e do tempo em que habito. Olhar para o lado, ou então recusar a hipocrisia mas encontrar a resistência sem me deixar invadir por torrentes de sentimentos sombrios.

Fazer um acto de justiça: prestar tributo às poucas pessoas que são uma lição de vida – na família, nos amigos, nos colegas de trabalho. Esquecê-los é cometer a imprudência de não dizer como são eles o terreno que aplaina o meu crescimento, que nutre o bem-estar pessoal. Queria encontrar as palavras para tecer loas assíduas aos meus pais, aos meus irmãos, à Paula, à Leonor, aos amigos que foram certidão do meu amadurecimento, aos colegas com quem já aprendi tantas coisas. É nesses momentos que as palavras são sempre escassas para revelar a grandeza dos sentimentos que todas essas pessoas instalaram em mim. Esses são os momentos em que uma gratificante lufada invade todos os poros, cobre-me com o zéfiro dos predestinados à felicidade. É para aí que estão a apontar os ponteiros da bússola.

O resto, o resto que se amotine no baú das coisas diluídas de importância. Coisas, pessoas, letras, artes, manifestações, comportamentos - esses pequenos nadas têm destino traçado. Entregues à somenos importância que merecem, que se revolvam no quarto esquecido hermeticamente fechado a sete chaves. Em nome das coisas belas que a sempre curta vida nos agracia.

2 comentários:

Anónimo disse...

Escreves muito bem!Vou voltar a este blog..é um lugar interessante para se estar!

Anónimo disse...

Fabuloso! Estou sem palavras. Parabéns!
Ponte Vasco da Gama