24.10.05

Dreams come true

Ouço Antony and the Johnsons, música que soa a ladainha sofrida, uma voz cavernosa sempre pontuada pela melancolia. Ouço-os repetir: “dreams come true”. Uma expressão que se sedimenta num idioma, uma expressão de difícil tradução quando se ensaia decifrá-la no idioma pátrio. Por tentativas: sonhos que se tornam realidade (numa tradução literal), ou sonhos concretizados (tradução adaptada ao contexto, numa das raras expressões em que a tradução para português representa uma economia de palavras).

Os idealistas, os sonhadores, os que vivem agarrados às utopias pessoais, quantas vezes não suspiram para que um dia um, vários sonhos se tornem realidade? Esses, os sonhadores, vivem desligados da terra, ancorados nos sonhos que constroem como nuvens acasteladas no imaginário flutuante. São os sonhos que laboriosamente edificam que os guiam. Desprendem-nos da vida terrena, sanciona-os uma existência etérea, com a marca do onírico. Dir-se-ia que constroem castelos de nada, sonhos com substância, carnudos cenários idílicos onde a vida se desmaterializa. Sonhos, uns perto de serem alcançados, outros tão distantes como inatingíveis.

Às vezes os sonhos têm a meta desimpedida. Como nos filmes onde tudo acaba bem, alguns sonhos têm um dia aprazado para deixarem de ser sonhos. É o dia em que o sonho coincide com a vida palpável. O sonho desvanece-se como pétalas tocáveis que vêm cair no regaço do sonhador. O sonho torna-se realidade. Soam as trombetas, cantam-se loas à vivificante sensação de um sonho que deixou de o ser. O mapa dos sentidos tacteia as delícias do sonho que acabou de se fazer real. O sonhador compulsivo entra nas arcadas do deslumbramento, saciado na aprazível apoplexia de quem sabe ter dobrado a clausura dos sonhos.

E, no entanto, as sensações indizíveis de quando o sonho se perde no passado duram uns escassos instantes. O sabor do júbilo não se demora: o seu prolongamento traz a estranha sensação de perder o contacto com o encanto do sonho que se fez realidade. A afeição à embriaguez de felicidade faz perder o significado dos instantes onde só há o êxtase, onde se sente que o sonho passou para o lugar das sensações que se sentem. São breves instantes, uma intensa mas curta estrada onde os espinhos outrora cravados nas mãos, os espinhos necessários para dobrar o cabo do onírico, semearam a paisagem acalorada, verdejante, onde flutuam os odores quentes dos frutos e das flores que coincidem na transcendência do sonho que passou o limiar do sonho e se fez coisa tangível.

É então que o sonhador sente como é inútil sonhar. Como é vão ansiar pela concretização do sonho. Os difíceis degraus que levam a sair da prisão do sonho, ou os aleatórios passos para de lá escapar, são um bafo acolhedor que depressa se consome na voragem dos sentidos acalentados. Muito se idealizou, tantos foram os esforços, ou as coincidências da sorte, para depressa o concreto outrora apenas sonhado deixar de ter o valor dantes tão desejado. Como se apenas o sonho, enquanto sonhado, tivesse a fragrância que norteia os sentidos. Momento chegado em que o sonho o deixa de ser, acolhido nos louros do triunfo. Esgotam-se as recompensas nos breves instantes de embriaguez dos sentidos.

Dedilhada mais uma página, cumprido um sonho, a larga avenida surge vazia. Como vazias são as avenidas a meio da madrugada, apenas testemunhadas pelas luzes dos lampiões que oferecem guarida aos tresmalhados passeantes que se aventuram noite fora. Vazia, até que outro sonho seja idealizado, outro projecto se inscreva na agenda. Como se os sonhadores fossem macacos, de galho em galho. Sempre insatisfeitos, ávidos para descobrirem os segredos escondidos pela neblina de um sonho; ainda insaciados, quando o sonho se exangue no quadro tacteado pelos sentidos, como se a concretização do sonho afinal nada representasse.

Vão de sonho em sonho, no percurso sinuoso que é um desafio inacabado. Que nunca há-de ser acabado.

2 comentários:

Anónimo disse...

"Hope there's someone...."

Consegues surpreender-me a de uma maneira...

Apesar de não te conhecer pessoalmente espero que um dia nos encontremos num fugaz clarão universal.

Anónimo disse...

Hope there's someone...."

Consegues surpreender-me de uma maneira...constante

Apesar de não te conhecer pessoalmente espero que um dia nos encontremos num fugaz clarão universal.