9.9.05

Não há animais vadios nas grandes urbes europeias



Começo por dizer que discordo da expressão "animais vadios". A dicotomia animais vadios/animais domésticos é uma falácia, só compreensível pelo pressuposto errado de que tomamos conta dos cães, gatos, periquitos, peixes, tartarugas que vivem connosco. Se deparamos com um animal que vagueia pela rua, sem dono, sobre ele pesa o rótulo de "vadio". Quando são os "vadios" que sublimam a essência da liberdade, não os que vivem no conforto de um lar e são titulados pelo dono que lhes empresta o qualificativo de "domésticos".

Nas deambulações por grandes cidades europeias, tenho reparado que os animais vadios não andam à solta pelas ruas. Estão imaculadas, higiénicas, como se existisse uma zelosa brigada que limpa as ruas de animais vadios. Por onde tenha andado, Europa fora, não vi cães esfaimados em busca de comida nos caixotes do lixo, nem gatos que se escapulem sorrateiramente de carros e transeuntes apressados. Nem testemunhei velhinhas caridosas que depositam restos de comida numa qualquer viela, atraindo uma chusma de gatos que se saciam de uma fome certa.

Há excepções. Animais que andam à solta em parques, sem que sejam vadios. Abrigam-se na frondosa vegetação do parque e sabem que os turistas e passeantes frequentes ficam enternecidos com os bichinhos, retribuindo com alimentos que os sustentam. São os esquilos de St. James Park, em Londres, ou as pombas que pousam o bico na mão de uma criança amedrontada que lhes estende um pouco de pão. São excepções, são atracções turísticas. Não o são cães e gatos sem dono que andam livres pelas ruas. Os mesmos que vemos nas grandes cidades portuguesas e que são perseguidos pelas nefandas brigadas camarárias que os capturam com métodos que são uma violência para quem tem o azar de ser testemunha da caçada.

Se calhar a ausência de animais vadios nas grandes cidades europeias é sinal de maior civilidade. As pessoas estão habituadas a ter animais domésticos, com quem mantêm uma relação de carinho que não é comum entre nós. É habitual que numa residência convivam vários cães e gatos, e não apenas um como é vulgar nos lares portugueses. E talvez também existam serviços que percorrem as ruas em busca de animais tresmalhados, que se convencionou serem uma ameaça à segurança e à higiene públicas. Porventura essas brigadas do fundamentalismo higiénico percorrem as ruas à noite, sem alarido, sem a brutalidade indigna. Para não ferir a susceptibilidade dos transeuntes que se chocam com a captura de um animal que, sabem, está condenado a uma injecção letal se não aparecer alma caridosa a reclamar a sua “propriedade” ao fim de um par de dias.

Há uma excepção maior: Roma. A Piazza Argentina parece um santuário de gatos. Centenas de gatos sem dono estabeleceram uma comunidade dentro de umas ruínas romanas que fizeram a Piazza Argentina conhecida. Haverá um significado para as ruínas. Confesso que o que me chamou à atenção foram os gatos que se passeiam pelas pedras milenares, os que repousam estendidos ao sol de Inverno que lhes aquece os corpos, os que ascendem das catacumbas e se aproximam dos turistas em busca de alimento. Pequenos e grandes, adultos e crias, de todas as cores, zarolhos e mancos, alguns com a cauda semi-cortada, outros exibindo as feridas por cicatrizar, marcas de lutas pelo território ou por uma gata com cio – gatos que têm o seu império naquela praça. Sem serem uma praga que enxameia a cidade eterna, nem perseguidos pelas autoridades embebidas num afã sanitário.

Os gatos da Piazza Argentina são um ex-libris romano. Rivalizam com os vários monumentos que recuam ao tempo da civilização romana, que fazem da cidade um museu vivo. Os puristas do higienismo decerto se chocarão, perturbados com a excepção romana, que permite a abundância de animais vadios sem que nada se faça para os eliminar da vista pública.

Incomodam-me mais espúrios advogados do fundamentalismo higienista. Sobretudo quando procuram provar que animais vadios à solta pelas ruas das cidades são um atentado à saúde pública. Manifestação de maioridade cívica é ser caridoso com esses animais que vagueiam pelas ruas, na incerteza do alimento que chega a horas certas aos seus pares que têm a sorte de serem chamados “animais domésticos”. Civismo é não perseguir estes animais, e não o contrário em nome de um tenebroso fascismo higiénico que se estende, ele sim, que nem uma praga.

1 comentário:

Anónimo disse...

Amigo..
Amei ler o que vc escreveu!!!Concordo inteiramente e comungo com seu pensamento..Sou protetora de gatos de rua,aqui na Bahia e vou ver de perto os gatos da Pizza Argentina,se Deus quiser...Obrigado por escrever de forma tão linda o seu pensamento sobre os animais..bjos,
lilia
liliavet@hotmail.com