30.9.05

Convite ao sedentarismo

A tecnologia, diz-se, está ao serviço do Homem. Os seus avanços são uma ode ao bem-estar humano. Inventaram os elevadores para nos cansarmos menos ao subir e descer prédios que irrompem rumo ao céu, poupando ao desgaste os lanços de escadas. Inventaram escadas rolantes e passadiços que levitam o passeante durante um percurso em aeroportos, para descanso dos fatigados músculos das pernas. Inventaram varinhas mágicas e batedeiras para as lides da cozinha serem mais rápidas, um contributo para a menor consumição das donas de casa (assumindo que elas são as maiores consumidoras destes electrodomésticos). Enfim, até as persianas das casas modernas já dispensam o esforço físico dos proprietários – sobem e descem com o toque num interruptor.

Estamos mais sedentários. As maravilhas da técnica são um tónico para o descanso do Homem moderno. A electrotécnica mudou a forma de viver. Damos menos trabalho aos músculos, no que teria sido pensado como estímulo ao bem-estar físico. E, no entanto, a afogueada forma de viver a vida moderna faz com que as pessoas cheguem ao fim do dia extenuadas. Os músculos, que agora muito menos trabalham, permanecem num estado calamitoso. Um paradoxo.

Talvez o paradoxo se desvende em duas penadas. Desabituados de exercitar músculos, eles vão mirrando, estão menos preparados para os esforços que ainda vão sendo exigidos. Mexemos menos as pernas – e, por arrasto, desabituamos o coração. Ou porque andamos nos elevadores para subir um andar, ou porque temos escadas rolantes em vez das esconsas escadas de degraus, ou porque nos fazemos ao automóvel para percorrer umas centenas de metros. Entregamos os músculos ao estado de letargia. E ressentimo-nos do mínimo esforço que vá para além do sedentarismo que se apoderou de nós.

Os que se entregam aos delírios da teoria da conspiração encontram pano para mangas na relação entre a elevada tecnologia e o sedentarismo traiçoeiro. Dirão que se trata de uma conspiração do abominável capitalismo contra a saúde das pessoas, um atentado contra o Estado social. Pois o sedentarismo a que as pessoas se entregam, extasiadas no isco venenoso das maravilhas da tecnologia, traz-lhes doenças amiúde. É o preço da inactividade física: deixam-se levar pela ilusão de que nada fazer é sinónimo de bem-estar, quando a indolência semeia as doenças – e o arrependimento.

É o corpo que paga, o espírito que sofre. Com a sua extrema generosidade, sempre aberto a compensar os cidadãos pelas prolongadas paragens devidas a doença, ou a indemnizá-los quando a doença incapacita, o Estado social encaminha-se para a falência. Cá está a dimensão conspiradora: é uma perversa aliança entre os oligarcas do capital espalhados pelo mundo. As grandes empresas que investem rios de dinheiro para legar às pessoas o ilusório bem-estar dos avanços da tecnologia são culpadas pelo definhamento do Estado social. Não esquecer que o hediondo capital foi autorizado a entrar no negócio dos seguros de saúde, dos planos poupança-reforma – entrando, aos poucos, em competição com os produtos que tradicionalmente são fornecidos pelo Estado social.

A maquinação está à vista do observador mais desatento. É o maldito capital que corrói por dentro as estruturas do Estado social. Vai pelas entranhas das pessoas quando as convida a cair no alçapão das maravilhas tecnológicas. É uma cenoura venenosa: germina as doenças típicas do sedentarismo, consome os recursos do Estado social quando ele é chamado a pagar avantajadas compensações aos muitos que se deixaram seduzir pelo traiçoeiro sedentarismo.

E assim fica provado: o capital faz mal à saúde das pessoas. Quando usado em excesso, aprisiona uma larga maioria aos patamares da alienação. Quando estas pessoas acreditam que o consumismo desenfreado lhes faz bem, mal sabem que a prazo estão a cavar a cova de onde não se hão-de levantar. Para gáudio dos malfadados capitalistas, que enchem os bolsos à custa das maleitas alheias. O lucro exige o sedentarismo militante. Quanto menos se mexerem, mais o capital sem escrúpulos cresce exponencialmente. Estes truques de ilusionismo barato dos capitalistas têm que ser denunciados. Vítimas de todo o mundo, uni-vos na denúncia!

29.9.05

Porque têm os furacões nomes de mulheres?

(Escrito numa perspectiva masculina não homofóbica. Desaconselhável a homossexuais anti-homofóbicos e, eventualmente, a arreigadas feministas.)

Dos últimos tempos, a atenção redobrada pelo fenómeno dos furacões. A destruição que varreu o Louisiana e que ameaçou derrubar o Texas em pouco mais de duas semanas, pôs em destaque este fenómeno meteorológico. Mais do que saber o que os desencadeia, houve quem se entretivesse a estudar a tipologia feminina dos furacões. Katrina e Rita. Todos são baptizados com nomes de mulheres, obedecendo a uma ordem preestabelecida. E pergunta-se: porque se convencionou que os furacões têm de levar com o nome de mulheres? Mudando de perspectiva – mais simpática para a causa feminista – porque há-de este demolidor fenómeno da natureza ter a bênção sombria de nomes de mulheres?

Um furacão é uma destruição avassaladora. Por onde passa deixa um rasto de devastação. Anuncia-se com um céu escurecido, os primeiros ventos que sopram com força, na antecipação da violência que virá mais tarde. É o aviso das chuvas impiedosas, batidas a rajadas de vento que espalham destruição. Quando a densa massa de nuvens que rodopia a uma velocidade incrível beija as localidades expostas à inclemência do furacão, é como se houvesse um fechar de olhos que se prolonga por longos instantes – as horas que demora a passar a terrível devastação atmosférica. Quando os olhos regressam do torpor, e as pessoas se libertam do recolhimento, testemunham o mundo às avessas, os danos avultados, antecipam o tempo que vai ser gasto para recompor as coisas no seu lugar.

As mulheres são um pouco disto tudo. Passam por nós como apeadeiros onde o comboio pára obrigatoriamente. Por mais que nos esforcemos por dar ordem de marcha contínua à carruagem, no propósito de evitar a paragem no apeadeiro dos prazeres e dores femininos, a paragem é inevitável. A misoginia não está no roteiro. É como se o barco buscasse porto para ancorar mágoas, saciar a sede de companhia. As águas bonançosas onde aporta não deixam adivinhar a agitação quando a mulher se transforma na avassaladora tempestade que leva tudo à frente. O porto de abrigo perde os seus predicados, e a tormenta é visita que perturba o espírito.

Os homens teimam em pintar uma imagem pouco simpática da mulher. Que tem feitio destemperado, que é criatura difícil de compreender. Os mais irónicos dizem que a mulher devia vir com manual de instruções, tanta a imprevisibilidade que arrastam. Levas de homens que se acham vítimas da incompreensão feminina queixam-se que nunca sabem como se hão-de comportar. Surge o dilema: porque se fazem são censurados por fazerem, se optam pela passividade cai-lhes a crítica em cima por terem ficado quietos. É arte trabalhosa satisfazer uma mulher. Que não se livra do rótulo de criatura caprichosa.

Como caprichosos são os furacões. Não se deixam controlar. Pode ser elevado o avanço tecnológico, podem ser abundantes os utensílios para monitorizar o comportamento da atmosfera. O Homem ainda não se conseguiu investir na condição divina que lhe permite controlar a natureza. Indomável, ela semeia os ventos e as tempestades quando decide nutrir o furacão que nasce do nada. Como indomáveis são as mulheres que, de repente, fazem nascer a tempestade num copo de água.

Se calhar, tudo isto está errado. Somos nós, homens, que desprovidos de mínimos de sensibilidade não temos capacidade para entender as mulheres. Terão elas razão quando decidem infernizar a nossa vida. Ou seremos apenas piegas, pintando um quadro negro quando achamos que nos infernizam a vida – quando, tantas vezes, elas têm razão nos protestos que se soltam da sua boca. E tudo isto está errado, apelidar furacões com nomes de mulheres, resquícios de um mundo masculino – ou "mundo" não fosse uma palavra masculina – que atira os males que o atormentam para os braços nada repousantes da mulher.

Suprema injustiça, que mistura um erro de análise com o egoísmo militante dos machos: porque elas dizem, e com razão, que não conseguimos viver sem elas!

28.9.05

O seu filho – manual de instruções

Dizer que ser pai encerra uma faceta negativa soa a heresia. A verdade é que essa faceta existe. Descobria-a ontem, na primeira vez que assisti a uma reunião dos “papás e mamãs” no infantário. Esse lado negativo da paternidade é ter que aturar os outros “papás e mamãs”. Parece um brainstorming de puericultura: os pressurosos progenitores trocam experiências pessoais, dizem como os respectivos petizes se comportam em determinadas circunstâncias. Depois entram numa estúpida competição: se a filha de uma faz isto, logo a seguir outra retorque que a dela faz ainda mais. Parecem os minhotos cantares ao desafio. É ver qual o menino que se distingue pelas maiores façanhas.

E depois há os “papás e mamãs” que prolongam desnecessariamente a reunião com perguntas que podiam reservar para o contacto pessoal com a educadora. Que me interessa partilhar com esses “papás e mamãs” se o bebé está a beber o leite pela palhinha, se os suissinhos devem ser comidos todos os dias, se o “controlo esfíncteriano” (eufemismo técnico para crianças que estão a começar a deixar a fralda – aprendi) está a ser um sucesso, ou se os petizes mostram laivos de precocidade que os coloca no pedestal das crianças super-dotadas?

O inquérito é desfiado à exaustão. “Papás e mamãs” dedicados e ansiosos com o desenvolvimento do filho encharcam a educadora com perguntas cujas respostas encontram naqueles livros de puericultura que abundam nas livrarias. São doutoras e engenheiros encartados que mostram a mais profunda ignorância. Vertem-na ali, à frente dos outros “papás e mamãs”, sem pudor. Elogia-se a atitude. Não é todos os dias que se encontram pessoas com a humildade suficiente para desnudar a sua ignorância.

Seria isto de enaltecer se fosse conforme à realidade. Não é o caso. Apenas frescura misturada com uma histérica preocupação que os bebés sejam incomodados pela mais pequena perturbação de crescimento. Como se fosse um percurso linear, sem as vicissitudes de acontecimentos que nem os mais preocupados “papás e mamãs” conseguem controlar. São estes “papás e mamãs” que entram em pânico ao mais leve sinal de doença – das que fazem parte do catálogo das normais doenças infantis –, estes os progenitores que não hesitam em colocar os meninos numa redoma. Sem saberem que as redomas são o mais artificial meio de proporcionar crescimento aos seus filhos. Porque o mundo, lá fora, não tem nenhuma redoma. E porque os filhinhos do ignaro povo nascem e crescem sem conhecerem o mundo de preocupações mil dos “papás e mamãs” requentados, e no entanto nascem e crescem e têm as mesmas doenças infantis e chegam a adultos viçosos como raramente os que vêm da redoma conseguem ser. Poderão ser mais boçais, menos cultos, sem poderem singrar na burguesia ascensional, por falta de oportunidades que os “papás e mamãs” doutores e engenheiros souberam proporcionar aos seus rebentos. Pelo menos não tiveram que aturar uma infância com dois exemplares super-protectores que mal os deixaram respirar.

Na reunião estávamos um punhado de “papás e mamãs”. Fiz o papel de ranhoso: participei passivamente, sem intervenções. Limitei-me a escutar a troca de cromos dos “papás e mamãs” – e tive a sorte que o “grande Benfica”, o maior clube do mundo, estava jogar com o pequeno Manchester United, ou teríamos uma afluência superior de “papás e mamãs”. Ouvi e registei mentalmente as notas do meu descontentamento. E, perante a desidentificação com o clima reinante, lancei a pergunta aos meus botões: estar-me-ei a demitir da condição de pai desvelado?

A consciência deixa-me dormir sossegado. Ser pai é uma experiência única. São palavras batidas, palavras gastas por tantos outros pais, mas as palavras que melhor corporizam o sentimento de paternidade. E tenho a noção que exagerar na condição de pai, elevar os bebés ao altar dos deuses que o não são, é um exagero que merece o tratamento de todos os exageros. Sem que isto signifique desvalorizar a condição de pai, ou depreciar a filha tão amada.

Parece-me que futuros brainstormings de puericultura terão que registar a minha ausência. Porque gosto de frequentar locais onde aprenda algo com as pessoas que lá vão – em vez de desaprender. E porque gosto de ser tratado pelo nome, em vez de ouvir a educadora chamar-me, a toda a hora, “papá”.

27.9.05

A ética do namoro

Convenções sociais enraizadas. É difícil desprendermo-nos delas. Hábitos que sedimentam a educação que recebemos – educação no seu contexto mais vasto, resíduo da socialização forçada, o que se aprende na escola, na convivência com os outros que nos rodeiam, na escola ou fora dela. Um espartilho que manieta a autonomia individual. Sufocados pelo “deve ser” imposto pelos padrões da socialização forçada, afinamos pelo diapasão ou arriscamos a ser a nota dissonante. Com os dissabores que se adivinham.

O marialvismo ainda se distingue nesta sociedade que se demora a desprender dos laivos campesinos. O saloismo imperante tece o plano instável de uma relação desequilibrada quando duas pessoas do mesmo sexo se relacionam. Um código de conduta: se o homem quer conquistar alguém, é a ele que incumbe dar o primeiro passo. Ela pode estar embeiçada por ele mas convém-lhe ficar estática, ansiosa pela arremetida final, pela estocada fatal. E se as coisas acaso se passam ao contrário, mandam os costumes dizer que a mulher é uma doidivanas, uma leviana que ousou romper com os hábitos estabelecidos.

Estranhos comportamentos. Haverá excepções, decerto. As feministas de lapela – as que não levarem o feminismo ao extremo de tanto gostarem de mulheres que se tornam lésbicas – não terão paciência para ficar à espera da iniciativa de um homem hesitante. Substituem-se-lhes, na iniciativa tardia. Mulheres que conseguiram romper com os hábitos que vêm das suas antepassadas – as “mulheres modernas” – fogem da letargia feminina a que a formatação educativa as moldou. Também elas não têm a paciência para esperar. Ironicamente, continua a haver másculas figuras que se abespinham quando a iniciativa se muda para o lado feminino. É o suficiente para se afastarem, para cultivarem a desconfiança acerca da “seriedade” da conquistada. Quanto mais não seja, porque foram eles os conquistados. Suprema heresia: serem conquistados significa a inversão de papéis. O que, para estas figuras marialvas, se lê como uma subordinação à mulher que os acabou de conquistar.

Tudo isto está errado. Do lado dos homens que continuam agarrados a estes hábitos absurdos. E do lado das mulheres que anunciam, com vozes desbragadas, que querem deixar de estar sitiadas pelo sufoco da dominação masculina. Pelo que toca aos exemplares masculinos, digo que faz bem ao ego saber que fomos conquistados. Qual é o problema do passo fatal ter sido dado por elas? É recompensador estar sossegado no canto, a fazer contas à vida, e de repente ser apanhado na rede por uma mulher que despertou antes para o mundo da atracção.

E se me dizem, ainda presos ao estigma da educação marialva, que as mulheres que ousam avançar sem esperar pela iniciativa do tímido pretendente são levianas, contraponho: porque motivo uma relação a dois, que se quer equilibrada em direitos e deveres, há-de ser enviesada à partida pela necessária superioridade do homem? É arrepiar caminho para esse desequilíbrio. É ignorar que o desejo não é um exclusivo masculino. Um esconso caminho de castração dos instintos femininos.

Desenganem-se os que lêem nestas palavras um assomo de feminismo. Em boa verdade, são palavras interessadas – diria mesmo, interesseiras. Ser conquistado é um bálsamo para o ego masculino. Acusar-me-ão de ser egocêntrico ao defender este ponto de vista. Acuso a recepção da reprimenda. Sem que esse egocentrismo possa ser confundido com egoísmo, ou a relação a dois desencaminha-se para um desequilíbrio de estatutos que não é salutar.

Nota final para as mulheres que persistem em cimentar a superioridade masculina quando ficam, imóveis, à espera da iniciativa do homem. São elas que, com mais ou menos alarido, protestam contra a desigualdade de sexos. Quando chega a hora de romperem com o marasmo estabelecido, tendo a oportunidade de inverter papéis sem esperarem pelo avanço do homem, paralisam-se de medo, tolhidas pelos fantasmas da socialização forçada. E perdem uma oportunidade para remar contra esta maré estupidamente máscula, herança de uma sociedade que gosta de tourear bravios bovinos, como parece que gosta de ver nas mulheres toiros que entram na faena para serem dominadas pela estocada varonil. Elas entregam-se nesta modorra que é o alçapão da sua dependência.

Mulheres deste país, emancipem-se de vez!

26.9.05

E se subitamente acordássemos espanhóis?

Não sei se é “inveja”, agora que os espanhóis celebram um piloto que ganhou o campeonato mundial de fórmula um. As façanhas desportivas são ingredientes importantes do orgulho nacional. Cimentam o sentir pátrio – neste caso, dos aficionados do desporto automóvel, mas também de muitos leigos que sabem que os bólides têm um motor e quatro rodas. É um conterrâneo que se distingue no escol dos eleitos. Motivo bastante para descer à rua em celebrações que exultam a pertença nacional.

Os espanhóis são exímios na arte de pôr nos píncaros o que é deles. Rivalizam com os franceses no chauvinismo. De tanto exagerarem são irritantes: na forma como se auto-elogiam, como se acham predestinados entre os demais povos. São o contraste com o país vizinho que está enclausurado na geografia peninsular. Somos conhecidos pela falta de auto-estima. Percorremos as esquinas da vida em lamúrias, vituperando a má sorte de termos nascido no berço geográfico que a desdita nos pôs em destino. A espaços, raros momentos de arrebatamento: nesses instantes parecemos rivalizar com o fervor nacionalista espanhol. No transe momentâneo acreditamos que também fomos bafejados pelo dedo divino, que numa qualquer manifestação desportiva levou um dos nossos à glória dos vencedores.

Por todo o lado, as competições desportivas servem para cimentar os laços de pertença de uma comunidade. Os desportistas tiram o máximo que há neles, espremem as capacidades físicas, a destreza, apostam na sorte dos audazes. Fazem-se campeões. E logo a seguir tudo se passa como se os milhões de concidadãos que os apoiam estivessem na retaguarda, a dar o empurrão final que os levou aos píncaros. Os desportistas perdem o exclusivo da façanha pessoal; são obrigados a partilhá-la com os patrícios que se revêem na vitória. Que é nacional, não do atleta que suou as estopinhas.

A vitória de Alonso no campeonato de fórmula um coincidiu com o início uma competição que se diz alternativa da fórmula um – a taça das nações de automobilismo. Os pilotos são remetidos ao anonimato pessoal, pois a classificação é feita das nações concorrentes. E, contudo, quem está ao volante é um indivíduo, não a nação. Desmerecem-se os dotes de condução do piloto, que aparece em nome dos milhões que o devem estar a apoiar. Como se ali, na exiguidade do monolugar, o piloto fosse o motorista dos milhões de compatriotas.

É um campeonato que revisita o que de mais anacrónico têm os países, agora que a globalização emerge, triunfante. Somos convidados a passar uma esponja pelo passado que nos devia envergonhar – o passado de guerras em nome do orgulho pátrio, de conquistas territoriais espúrias, de inimizades sem sentido, acobertando pequenas loucuras pessoais de líderes nacionais. Quando repouso a atenção neste tipo de competições que enaltecem a pertença nacional como factor de diferenciação do outro, mais me apetece meter requerimento a pedir a condição de apátrida.

À memória vêm as teorias de sociólogos, que procuram explicar os sedimentos que alicerçam o sentir e a pertença nacionais. Para os que pensam que isto de ser nacional é como a lição de sapiência de curas avisando os nubentes que o casamento vale até que a morte os separe, li há dias algo que me deixou esclarecido do contrário:

Antes afirmou-se que as pessoas têm a tendência para escolher o que lhes é familiar, o que explica a defesa da nacionalidade. Todavia, isso não é incompatível com a possibilidade das pessoas optarem por assimilar culturas de outros países” (Glynn Morgan, The Idea of a European Superstate – Public Justification and European Integration, Princeton, Princeton University Press, 2005, página 54).

Ao ler esta frase, ao olhar para o outro lado da fronteira, detectando os feitos, a capacidade de iniciativa, o orgulho que se esvai da pertença comum, e como em trinta anos os espanhóis cresceram tanto quando há trinta anos estávamos empatados numa pobreza periférica da Europa rica – pergunto-me se não nos faria melhor um certo dia acordarmos todos espanhóis. Talvez fizesse mal àqueles que ainda vivem agarrados a uma portugalidade enterrada nos manuais da escola secundária. Seria profiláctico para o nosso bem-estar, para a materialidade dos sentidos. Com um senão: embarcarmos na arrogante superioridade que os espanhóis exibem.

Reconsiderando as coordenadas, mal por mal, antes a humilde pequenez da gesta lusitana.

23.9.05

Eufemismo

Ainda a D. Fátima, a matriarca de Felgueiras. Mote para a campanha que apareceu milagrosamente do nada, do dia para a noite, depois do regresso da Evita Peron para consumo local:

"Sempre presente".

Claro, sempre presente.

A utilidade do voto negativo

Os críticos dirão: que legitimidade tem um abstencionista militante para dissertar sobre o voto? Passo por cima da crítica, exercendo o mais legítimo direito de opinião – mantendo a teimosia de me ausentar das mesas de voto, não por preguiça ou esquecimento; por convicção, por método.

Muitas vezes deparo com pessoas que dizem: vou votar no partido A, ou em fulano, só para que o partido B, ou sicrano, não ganhem a eleição. Presumindo que nem o partido A ou o fulano reúnem a simpatia genuína de quem assim procede, estamos no reino do voto negativo. Os eleitores votam não por estarem convencidos da superioridade do programa do partido que escolhem, mas porque não querem que um outro partido continue no poder ou venha a exercê-lo. Os especialistas da ciência política encontraram uma forma deliciosa de retratar esta prática: votar com os pés – como quem diz, através do voto, dar um valente pontapé no rabo do partido ou da personalidade que não queremos ver sentada no cadeirão do poder.

Tenho amigos que nunca votaram PSD e que nas últimas eleições autárquicas premiaram Rui Rio, porque era inaceitável o regresso do recauchutado Gomes à Avenida dos Aliados. Outros que nunca votaram PS fizeram-no nas últimas eleições legislativas: estavam cansados do desastre precoce Santana Lopes e, numa visão pragmática e empresarial, chegaram à conclusão que precisávamos de uma maioria absoluta – nem que fosse do PS (e este “nem que fosse” tem muito significado…). No horizonte perfila-se outro caso de voto negativo: pessoas conhecidas, com uma sensibilidade de esquerda, sentem-se seduzidas a votar em Cavaco Silva só para Soares ser derrotado.

Alguns destes casos de voto negativo tiveram o meu aplauso. Foi reconfortante saber que Gomes não ganhou a câmara municipal do Porto, como será delicioso saborear a (para já) previsível derrota do “pai da democracia” nas próximas presidenciais. Já não fiquei tão convencido com os que votaram PS com o fito de sanear o disparatado Santana Lopes, oferecendo de bandeja ao PS a sua primeira maioria absoluta – tenho para mim que Sócrates é uma versão “civilizada” de Santana, um embrulho diferente para a mesma incompetência. Tirando este caso, os resultados enchem-me de contentamento. Não pela vitória dos que reúnem mais votos, mais pela derrota de quem sai perdedor.

Cada um faz do seu direito de voto o que bem entender. Por isso é que sou abstencionista e me intrigam as posições moralistas dos que se indignam quando digo que me abstenho por uma questão de método. Adiante. Apenas para dizer que compreendo que haja pessoas que votam com os pés: para estas pessoas, mais importante do que a escolha que fazem com a cruz que colocam no boletim de voto, é a pessoa ou o partido que estão a marginalizar através desse voto.

Sou incapaz de optar pelo voto negativo. Há maneiras diferentes de utilizar o voto. Como há princípios que norteiam o comportamento do eleitor quando é chamado a exercer o seu direito. Pela parte que me toca, vejo o voto como uma escolha de primeira água. Há quem vote por exclusão de partes: olham para as opções possíveis e vão excluindo os candidatos de acordo com uma escala de antagonismo, até chegarem àquele que é o “mal menor”. Não consigo depositar o voto no “mal menor”. Se é, por definição, “um mal”, não é merecedor da minha escolha. Nisto do voto sou muito exigente com os candidatos que se oferecem no cardápio das opções. Porque sou exigente comigo mesmo. Nas eleições, como nas mulheres que escolhemos para a vida: não somos arrastões que aceitam tudo o que vem à rede; somos meticulosos, escolhemos quem julgamos ser de primeira água (sei de alguém que há-de ficar orgulhosa com o bizarro elogio que daqui lhe é feito…). Nas eleições, o mesmo comportamento. Para que o arrependimento da escolha não venha ao de cima ao fim de pouco tempo.

Se morasse em Lisboa, não votava em Carmona Rodrigues. Por mais que Carrilho me ponha os cabelos em pé com a arrogância e o pedantismo, misturados com uma oportunista apetência para as revistas cor-de-rosa. Vivendo no Porto, não irei votar em Rui Rio. Apesar de ver em Assis o pior que existe no PS do malfadado sistema que nos cerca, uma figura que exala tiques nazis quando ora de faca nos dentes. Nem Cavaco há-de merecer o meu voto. Apesar de ser grande a tentação, só para desmascarar o embuste soarista. Um voto é uma escolha. Uma escolha exige que opte por alguém com quem me identifico. Quando isso não acontece, prefiro a ausência da mesa de voto.

22.9.05

Faça você mesmo a sua justiça (ecos da senhora de Felgueiras)

É a macacada total. O forrobodó abrasileirado. Um país de faz-de-conta. Quem tem a sorte de ser privilegiado pelas benesses do poder acantona-se em regalias que estão vedadas ao cidadão comum. Este é o sítio onde uma pessoa bate asas para o outro lado do Atlântico para fugir à ordem de prisão preventiva conhecida antes de ser divulgada (por artes de conhecimentos partidários dentro de um tribunal).

A senhora que desafiou a justiça chegou à terra mãe para se entregar. Após uma curta audiência no tribunal, saiu para aguardar julgamento em liberdade. Acobertando-se na covardia de uma absurda disposição legal que dá guarida aos candidatos a eleições – diz-se, para não frustrar a liberdade de escolha, os candidatos não podem dar com os costados na prisão num período que antecede as eleições. O patético advogado apareceu perante as câmaras, assegurando a pés juntos que ela não ia requerer o estatuto de imunidade. Esqueceu-se de dizer que nem precisava de o fazer, ele aplica-se automaticamente. O juiz concordou com a opinião de um afamado constitucionalista da praça, que sentenciou acerca da aplicação imediata desse estatuto. Ainda que minutos depois tenha escutado outro, mais jovem, constitucionalista a opinar o contrário…

A populaça que na terrinha apoia a fugitiva extasiou-se com o “acto de coragem”. Fazer as malas, abandonar o país tropical, logo agora que na terra mãe o clima se descompõe com o anúncio dos primeiros ares outonais. É um sacrifício deixar as terras de Vera Cruz, agora que no trópico oposto chega a época estival. Realmente, grande o sacrifício imposto à senhora. Mas de acto de coragem não se pode falar. Bem aconselhada pelo advogado com ar de espertalhão, a senhora sabia que ao pôr os pezinhos em terra pátria a espera da polícia judiciária seria um acto de cortesia. Quando alguém bate num paquiderme inanimado, não haja dúvidas que se trata de um acto de coragem inigualável…

Neste país risível, já nada me deixa boquiaberto. Aliás, só fico surpreendido quando parece que ameaçamos entrar nos eixos da normalidade. Então alguém virá descompor as coisas, reinserir a terrinha nos padrões da mais abjecta anormalidade. O regresso triunfal da senhora fugida da justiça é um acto encenado, um exercício ao jeito dos chicos-espertos nacionais que por aí abundam. A senhora despediu-se do país do terceiro mundo que a acolheu num sucedâneo de exílio dourado, voltando à terra que a aclamou através do voto, antes como agora com os tiques de terceiro-mundismo que esmerou no tirocínio brasileiro.

A senhora protestou a sua inocência mais que uma vez. Ainda em terras lusas, decorria a investigação. Já de papo ao leu, pele bronzeada nas praias de Copacabana, em orquestradas entrevistas a canais televisivos. Repetiu: era indigno ir para a companhia dos presos de delito comum, fosse feita a vontade do tribunal de Guimarães. Soube-se, então, que há cidadãos de primeira com direito a regalias exclusivas. Só para os privilegiados da política. Através desta senhora que destilou impertinência a rodos, ficámos a saber que os eleitos devem ter um tratamento de excepção pelo Estado de direito. Nem que isso signifique abrir um rombo de grandes dimensões no Estado de direito – apenas um simulacro de Estado de direito, um Estado de direito posto entre aspas.

A senhora fez as malas Chanel, envergou a pirosa fatiota cor-de-rosa (reminiscências partidárias, ainda que as comadres estejam de candeias às avessas), e pousou na santa terrinha que tinha tantas saudades da figura sebastiânica. Saiu, sorridente e triunfante, do tribunal. Com a pesporrência de quem se afirma “disposta a colaborar com a justiça no apuramento da verdade”. Só se isto não fosse uma terra faz-de-conta é que aquela frase faria corar os mais ingénuos: apetece perguntar, porque não quis a senhora colaborar com a justiça quando devia ter respeitado uma ordem do tribunal? (Ainda que fosse tão penosa, pela visita temporária aos calabouços.)

Cidadãos deste país: saibam que podem fazer a justiça que se aplica ao vosso caso. Mesmo que estejam inocentes – e quem não deve não teme – encetem uma fuga quixotesca para outras paragens se não se quiserem sujeitar à “vergonha” da prisão preventiva. Depois deixem passar o tempo. Pavoneiem-se no turístico exílio. Esperem por umas eleições e peçam a um grupo de amigos para formar uma lista que concorra às eleições. Que não se esqueçam de pôr o vosso nome no rol dos eleitos – de preferência, encabeçando a lista. Regressem então, aproveitando a imunidade que a absurda lei vos concede.

Tudo acaba bem. Menos para os moralistas de serviço que não se cansam de defender a “autoridade do Estado”, as delícias do Estado de direito. Para esses, o travo amargo de alguém que se ri na cara de justiça, na mais completa desautorização que a justiça pode sofrer.

21.9.05

No cadafalso das ilusões

Ainda a rotina, e a confusão entre rotina e conservadorismo. Releio o texto de ontem. Apercebo-me que cavei o meu próprio cadafalso. Fujo do entediante bafio dos conservadores crónicos, dos que se recusam a ver a mudança como roteiro necessário para virar a página do que anda mal e nos rodeia. Porém, caí numa confusão: englobar na mesma categoria conservadores e pessoas dadas a uma sequência de hábitos que se repetem dia após dia. O que se chama rotina – e que tantas vezes se presta a um julgamento negativo.

Ao reler o texto de ontem, pus-me a olhar para dentro de mim. Afinal sou alguém possuído pelo terrível estigma da rotina. Se saio da rotina que preenche o quotidiano, é como se retirassem parte de mim, a estranheza de seguir um percurso não habitual, com a desconfiança dos passos que se dão por veredas dantes não calcorreadas.

Dou como exemplo o ritual do jogging matinal. Acordar sempre à mesma hora – dez minutos mais tarde e descompensam-se hábitos adquiridos. Pequeno-almoço, casa-de-banho aproveitando para ler os e-mails que caíram durante a noite (virtudes do wireless), saída de casa na companhia da cadela. Curto trajecto até ao Parque da Cidade. Os mesmos exercícios de aquecimento antes de dar corda às pernas para os quase sete quilómetros de corrida compassada, seguindo sempre o mesmo percurso. Ao fim de vinte e cinco minutos de ofegante esforço, recompõe-se o corpo com alongamentos. Antes disso, uma vista de olhos ao relógio, confirmando o tempo que gastei – o desafio do próprio corpo, uma competição comigo mesmo, tentando ir mais longe. Quase a finalizar, cem abdominais para tentar abater o pneumático que teima em adornar a barriga. E um sprint até ao carro, no esforço final. De regresso a casa, uma paragem no café de sempre para tomar o café matinal, que ajuda a retemperar as forças, lenitivo para o dia que se espraia pela frente.

Não há dúvida, de rotina se trata. Quase compulsiva. Terei razões para me preocupar com a rotineira prática com que começo o dia? Ao reler o texto de ontem, a resposta é um certeiro sim. Diferente é a conclusão ao medir o pulso ao que sinto se me faltam os passos repetidos em cada manhã dos dias de semana. Se acaso uma noite mal dormida me faz acordar para além da hora gizada; ou se a rara preguiça vence a cadência do exercício e falho a ida ao parque, é como se o dia começasse imperfeito, turvo. Tardo em recompor-me da ausência dos primeiros passos da rotina instalada. O dia começa mal, e tarde se encaminha para uma jornada normal.

Dou comigo e reflectir na dependência dos hábitos mentalmente agendados. A esta dependência a que se convencionou chamar rotina. Como dizia antes, parece que leso o bem-estar se as circunstâncias obrigam a escapar aos passos rotineiros. Mais do que me afastar dessa rotina. Contudo a rotina, quando continuada por tempo sem fim, pode trazer o cansaço dos gestos que se passam a repetir maquinalmente. O fiel da balança, a sensação de cansaço, o mau estar dos hábitos instalados. Aí a rotina passa a maleita. Carece de prescrição para a mudança.

Fazer coincidir rotina com conservadorismo é um exercício redutor. Se bem me conheço – e há sempre lugar à surpresa… – conservador é coisa que não sou. Dado a rotinas, confesso que sim. Não pela indolência da rotina, pela pasmaceira que espelha um certo adormecimento intelectual. Antes, rotina como esteio da organização interior, uma tentativa de alinhar uma agenda pessoal de tarefas que são, assim o penso, exigências para o bem-estar pessoal.

Se calhar vivo na ilusão de que esses gestos que se repetem dia após dia são a sequência necessária que alimenta o bem-estar. Se calhar há coisas desconhecidas que trazem outras compensações nunca tocadas. O desconhecido, ponte por atravessar – que a rotina desvia para outros caminhos. E mesmo esta dúvida metódica de mim mesmo, não será expoente da rotina que me domina?

20.9.05

Os conservadores não gostam dos STCP

É só novidades: as filas para os autocarros inverteram o sentido; os passes sociais têm uma tipologia diferente; até a numeração dos autocarros sofreu mudanças radicais. Transformações que rompem com hábitos consolidados, o que semeia a perturbação nos utentes tão acostumados a um certo ritual quando utilizam os autocarros urbanos do Porto.

As mudanças trazem o aroma da modernização. Já antes os STCP inovaram ao espalhar pelas paragens postos electrónicos que informam sobre o tempo que o autocarro demora. Maravilhas do GPS. Em vez da incerteza de quanto tempo penar enquanto o autocarro tarda, o utente tem uma informação preciosa. Se o placar electrónico lhe diz que o autocarro ainda demora um bom punhado de minutos, há tempo para comprar o jornal, levantar dinheiro da caixa Multibanco, tomar o café da manhã. E se acaso a paragem não dispõe destes painéis, pode-se enviar um SMS com o código da paragem e o número do autocarro, que logo de seguida se recebe no telemóvel uma mensagem com a indicação do tempo de espera previsível.

As mudanças espelham sinais do tempo. Modernização de um serviço, imperativa, quando se deseja melhorar a qualidade do serviço. Imperativo que se reveste de maior importância quando as ideias dos ambientalistas ecoam junto de mais e mais pessoas – deixar o carro estacionado na garagem, ir para o trabalho de transportes públicos. Para que a qualidade da atmosfera não se degrade mais.

Os conservadores serão pouco dados às virtudes do avanço tecnológico. Não lhes dão a atenção que a inovação reclama. Pior será a sua reacção a outras modernices que nada têm a ver com faculdades da tecnologia. Questionam a inversão do sentido das filas nas paragens, o porquê da mudança radical nos passes, mostram-se descontentes com a mudança da numeração que vai obrigar a uma reordenação mental que leva o seu tempo.

Os STCP esforçaram-se por explicar as mudanças de rumo, com a pedagogia ao seu alcance. Tentaram justificar porque faz mais sentido formar filas no sentido contrário ao que as pessoas estavam habituadas. Para reforçar a componente pedagógica, espalharam pelas paragens da cidade peugadas pintadas a cores vivas indicando a ordem por que se devem formar as filas. A mudança dos passes deve ser uma operação de cosmética, exigências de racionalidade administrativa. Sacrificam o utente, que não compreende o que tem a ganhar com esta transformação. A numeração dos autocarros, imitação de práticas disseminadas Europa fora, na europeização necessária do país periférico.

Paro para pensar: há quanto tempo não apanho um autocarro? Nem me recordo, tanto o tempo que já passou. Percebo que os transportes públicos são um serviço crucial para o bom andamento de uma cidade. Para as pessoas que não têm possibilidade de possuir transporte próprio, para as que optam por deixar o veículo particular em casa. É o meio que as leva até ao trabalho. Quanto melhor o serviço, maior a predisposição para o trabalho, maior a produtividade – satisfazendo os oráculos que vêm na produtividade nacional a saída para o estado comatoso a que estamos aprisionados. Os utentes são atreitos às travessuras do conservadorismo. Os hábitos enraizados, um esteio da rotina maquinal que leva estas pessoas de casa ao trabalho, de regresso a casa pelo final do dia. A rotina não se compadece com mudanças do género.

Quem é conservador desta forma – os que o assumem, e os que o são sem saberem – há-de pensar que os STCP são inimigo da rotina que deles se apodera. Para eles, os STCP são uma irrequieta imagem que atormenta os hábitos instalados, que os força a readquirir novos hábitos. São rivais da mudança, olhada com desconfiança. Emparedados entre o comodismo dos hábitos e a indolência mental, estes conservadores são o antónimo da mudança. Não percebem um serviço sublime que os STCP lhes presta: étimo de mudança de hábitos, num refazer de costumes que exige disponibilidade mental. Força-os a romper com os hábitos adquiridos, numa leva de ar fresco que, de resto, vem semear novas rotinas.

Que estes conservadores não se preocupem. A adaptação leva o seu tempo. Mas depois sedimentam-se os hábitos que são percursores de um novo conservadorismo que há-de vingar. Nunca os abandona, esta forma conservadora e rotineira de ser.

19.9.05

Almeida Santos, Cavaco, Salazar, partidos diabolizados

Não tenho procuração de Cavaco. Nem um grama de simpatia pelo algarvio. E, contudo, ao ouvir as desesperadas palavras de alguns obtusos socialistas que sentem que o patriarca Soares vai encerrar a carreira política com uma derrota, apetece-me votar Cavaco. Asseguro-me, por imperativo de higiene mental, que não o farei. Mas confesso que é grande a tentação ao ouvir as patetices de geriátricas figuras do universo PS.

Desta vez a fava calhou a Almeida Santos – outra “reserva moral” da república, fossem os dizeres socialistas verdades incontestáveis (aprazível imagem no mundo criado na cabeça de Jorge Coelho…). Escolheu a convenção autárquica para dissertar sobre eleições presidenciais. Como é bom de ver, enganou-se no local para afinar a língua sobre a eleição que se encaminha para a derrota. Sem nomear o “inimigo”, num discurso cheio de referências indirectas. Como de costume, verve de tribuno à velha maneira dos republicanos do início do século XX, num anacronismo que cansa. Truques argumentativos de um lado para o outro, para chegar à comparação entre Cavaco e Salazar – porque, para Almeida Santos, ambos depreciam os partidos, essas emanações máximas da democracia.

(Reparei, com interesse, numa omissão – ainda estou para saber se apenas distraída, ou por complacência que muito significado terá – de comentadores e comunicação social em geral. Ninguém disse que Almeida Santos se enganou no fórum para largar a chibata sobre Cavaco. Pois se era verdade que em Coimbra os camaradas cor-de-rosa estavam reunidos para arregimentar fidelidades para as eleições autárquicas, só uma confusão própria de quem raia a esclerose explicará que este “decano do regime” tenha discursado sobre as eleições erradas. Ou então a confusão naquelas cabeças é tão grande que tudo vale. Até – e sobretudo – iludir os pobres eleitores, esses incautos que com tanta facilidade caem na esparrela. Omissões que muito dizem da caridade com que o PS é tratado pela imprensa).

Almeida Santos podia desmascarar Cavaco com um simples gesto. Em vez de fazer a colagem de Cavaco a Salazar – muito conveniente, para esbracejar o fantasma do “fascismo” que une as esquerdas quando há que vasculhar fantasmas no bafiento armário das velharias – bastava lembrar que Cavaco já liderou um partido durante mais de dez anos. E que Cavaco só avança quando tiver a certeza que a máquina laranja está com ele. Isto era suficiente para colar Cavaco ao rótulo de mentiroso oportunista, que se tenta aproveitar do desgaste dos partidos como estratégia que é a rampa de lançamento da sua candidatura.

Almeida Santos preferiu pisar terrenos pantanosos – comparar Cavaco a Salazar, só se for por ambos terem sido professores de finanças. E depois veio em defesa da honra de uma dama ofendida que nunca, mas nunca, pode ser melindrada, ou não caia sob os acusadores o epíteto de anti-democratas. Almeida Santos acha que os partidos são a essência da democracia. Sem eles, esboroam-se os alicerces da democracia.

Esquece-se Almeida Santos que os partidos são responsáveis pela transformação do regime. Uma democracia travestida em partidocracia. E quando enaltece a “salutar vivência democrática” dentro dos partidos, está a enganar apenas os que desconhecem os caciquismos vários em que os partidos são especialistas – tráficos de influências, favores que se pagam mais tarde, contagem de espingardas de concelhias e distritais, “jotas” e estruturas que representam sindicatos, para fazer chegar ao cadeirão do poder ao figurão que, no momento, é o mais conveniente.

Os Almeidas Santos que por aí andam ainda não perceberam que eles são os primeiros responsáveis pelo descrédito do regime. São os algozes de uma democracia desacreditada – e só os que insistem em desvalorizar o significado das elevadas taxas de abstenção é que não percebem isto. Os Almeidas Santos são os velhos do Restelo da partidocracia dominante, a tralha do regime. Pena que as gerações de políticos que estão na linha de sucessão sejam mais do mesmo, mas achas para uma decrépita fogueira em que a desonestidade intelectual (outra vez a comparação entre Cavaco e Salazar como exemplo) é a marca de água da representação dos eleitores que continuam a gostar de ser enganados através do voto.

16.9.05

Subjugação feminina

No carro está sintonizada uma estação de rádio que só passa música. Não se escuta a voz de locutores que anunciam os autores das músicas que acabaram de passar. Muitas vezes há uma música que cativa a minha atenção, mas fico na escuridão, sem saber quem é o intérprete. O que vale é que recentemente foi criado um serviço por telemóvel que permite sair das trevas – o “qualé”. Faz-se uma chamada telefónica, que transmite o som da música durante vinte segundos e, de seguida, recebemos no telemóvel uma mensagem com o enigma decifrado.

Ultimamente uma música despertou a minha atenção. Não por ser um tema que tenha caído no goto, mas pela perturbante mensagem que se solta da voz enigmática da vocalista. Por entre os acordes da música suave, ela vai repetidamente sussurrando ao ouvido de quem a escuta:

If you want me for your girl, all you have to do is see that you're not the boy for me.”

Não me transtorna o relativismo que domina a vida contemporânea. Novas formas de vida, novas vivências, as ditas “relações abertas”, um cardápio extenso que faz com que hoje seja difícil distinguir normalidade da anormalidade. Nem me interessa fazê-lo, a partir do momento em que a escorregadela para aquilo que os virtuosos do objectivismo vituperam como anormalidade resultar de um acto consentido das pessoas envolvidas.

Regresso à frase repetida até à exaustão pela vocalista. A imagem de um diálogo coarctado, uma frase retirada desse diálogo imaginário entre ela e um apaixonado que lhe declara intenções. Altiva, avisa que só há uma hipótese de aceitar o namoro proposto: é ele reconhecer que não é homem para ela, que não está à altura da grandeza da donzela. A aceitação implica a submissão do apaixonado. Se quer um sim da sua pretendida, terá que lhe dizer que ela é grande demais para a sua pequenez. Num acto de humildade, ele ajoelha-se e presta-lhe a vassalagem que o seu pretenso amor desbrava. Sem reparar que o acto de humildade se confunde com uma exibição humilhante.

Ao escutar repetidamente a frase naquela música, e ao reter a imagem de subjugação proposta pela emproada rapariga, dou comigo a pensar como podem as relações ser marcadas pelo desequilíbrio. À nascença, condenadas à precariedade. São estímulos enviesados, pois o relacionamento é feito de estatutos desiguais. A balança pende para um dos lados, expondo as fraquezas do outro parceiro. Quando ela impõe como condição de entrega que ele admita que não a merece, coloca-o num patamar de inferioridade, no limiar da humilhação. Aos que se prestam ao acinte, uma sublime confusão: acreditarem que o amor tudo recompensa. Mesmo a diminuição pessoal que passa por um acto de suprema humilhação, como o retratado na frase que não cessa de se ouvir enquanto a melodia percorre o seu caminho.

Do lado dela, também uma peça intrigante se desprende do quadro: impor a subjugação do parceiro que lhe quer arrebatar os favores do coração. Esta condição é estranha: supõe que ela se entrega nos braços de quem está disposto a declarar que não a merece. Ora se ela é merecedora de pretendente maior, porque aceita a ternura de alguém que está aquém da sua grandeza? Faz-me lembrar aqueles que pensam: tudo o que vem à rede é peixe. Depois arrependem-se, quando regressam da embriaguez de sentimentos e se querem livrar da companhia de ocasião. A “entrega” (conceito que supõe um desprendimento de si que ultrapassa o limiar do aceitável, nem se compagina com o que se convencionou chamar “amor”) desvenda o apoucamento de si mesmo, a pretensão da osmose que supõe a perda de identidade, a subjugação à vontade do outro(a), uma forma amiba de ser. Um maniqueísmo do amor, na incompreensão dos que julgam que amor é entrega absoluta e incondicional.

Sinal dos tempos: nesta modernidade vencedora são as mulheres, numa vingança sobre a história, que subjugam os fracos homens que se põem a jeito. Uns e outros nada aprenderam com os despojos do passado.

15.9.05

O omnipresente da fortuna

Está na moda: os bancos recorrem a figuras públicas, são o isco que atrai mais clientes. Há semanas foi o BPI que apresentou o homem que mais próximo está da condição divina, aquele que não se cansa de se auto-elogiar como o melhor treinador de futebol do mundo. Esse, que vai ter a honraria de ver uma réplica de cera numa sala do famoso museu londrino que imortaliza celebridades, vivas ou mortas.

Agora é o banco Millennium que se socorre de um cantor místico, vestes brancas, pose misteriosa que se esconde nos óculos escuros de generosas dimensões. O sucedâneo de cantor não se cansa de apregoar: “estou aqui, estou aqui, estou aqui”. No spot as imagens sucedem-se com figuras anónimas, nas mais variadas situações da vida, enquanto da voz cavernosa do cantor se solta o “estou aqui”. Uma parceria bem estudada: o banco, pela voz do cantor, informa-nos da sua omnipresença. Só os incautos se surpreendem com o fenómeno. Consta que este é o banco da Opus Dei. Assim se percebe a encomenda da cantoria que, de forma monocórdica e cansativa, diz que o banco está por todo o lado, “no meio de nós”, como a sua figura tutelar.

Curiosa é a presença de Abrunhosa como testa de ferro desta omnipresença. É a mesma individualidade que se destaca por intervenções públicas, fora da esfera de acção “artística”, que estão nos antípodas do que representa o banco da Opus Dei. Não se sabe do registo religioso do artista. Não consta que seja devoto do catolicismo fervoroso, que frequente templos e sacristias. Ao escutar as palavras que acompanham as suas músicas, há um suave traço de libertinagem que não se encaixa no catecismo católico. Mesmo as intervenções públicas com conotações políticas desnudam preferências bem distantes das opções políticas do estereótipo representado pela imagem do banco.

Parece uma escolha contra-natura. Falta saber quem foi mais cínico – se o banco, se o cantor. Pode ter sido o banco: soube atrair o cantor a dar a cara e a pseudo-voz, com a choruda recompensa que engrossou a sua conta bancária. Terá sido o banco, se vingar a tese de chamar a si mais clientes que outrora eram ovelhas tresmalhadas, cientes de que este é o banco dos católicos mais empedernidos. Atraídos pela chancela do cantor que é um dos seus ícones contemporâneos, esta imensa mole humana passará a depositar as suas poupanças à guarda do banco da Opus Dei. Objectivo cumprido.

O cinismo pode ter partido de Abrunhosa. Sem se importar com as acusações de incoerência – porque as suas aparições públicas filiam-no em causas que estão longe da retórica católica – o artista embolsa uma maquia invejável paga por quem nele não se revê. O adversário paga-lhe, mesmo sabendo das divergências. É um triunfo com um travo adocicado. Naõ interessa a curvatura pronunciada na espinha dorsal do artista e do banco que o contratou? Nem tão pouco que a flexibilidade da espinha dorsal dos fãs do artista é do mesmo calibre, se mais tarde se observar que a campanha se saldou por um êxito considerável.

De quando em vez, a vida depara-se com surpresas deste teor. É das coisas mais belas que o incerto futuro traz. Quando estamos imersos num aborrecida modorra, despertamos para um acontecimento surpreendente que traz o sal e a pimenta, condimentos que são a alavanca da vida. Há as surpresas agradáveis, as surpresas desagradáveis, as surpresas que nos deixam atónitos. Esta campanha publicitária encaixa-se no último perfil. Por ela pude concluir que Abrunhosa anda de mão dada com os fundamentalistas do catolicismo, numa parceria que anuncia a sua cumplicidade por uma omnipresença prenhe de fortuna. É o banco que está no meio de nós, dando o suporte financeiro aos sonhos que têm um preço elevado. A divinização do banco tem o sacerdote supremo, o cantor que dá a cara. Ele há coisas do diabo: e mesmo as figuras mais demoníacas, que professam modos de vida nada consentâneos com o beatismo militante do ultra-conservadorismo católico, acabam por se converter em testas de ferro da retórica evangélica.

Do passado emergem histórias de artistas que andaram por “caminhos ínvios” e que, entretanto, se converteram às “delícias da religião” (Nick Cave, e antes um Cat Stevens que até mudou de nome, em nome do Islão). Abrunhosa, amigo do Bloco de Esquerda, corporiza a imagem do tele-evangelista do grande líder desta agremiação partidária. Terá Abrunhosa encontrado a sua redenção?

14.9.05

Pulsão cleptomaníaca, ou os descaminhos da (in)estética


Passava por aquela padaria todas as madrugadas. Ainda fechada ao público. Lá dentro, atarefados padeiros de caras tingidas de farinha produziam o pão que, horas mais tarde, desfilava nos pequenos-almoços de muita gente. À porta da padaria, do lado de dentro do gradeamento, um enorme boneco de porcelana. Um gigante cozinheiro, ostentando o seu garboso barrete branco. Parece que estava de guarda à padaria, afugentando temerários larápios que ousassem entrar nas instalações para levar o que não é seu.

Por vezes ele passava pelo local durante o dia. A luz do sol libertava o boneco cozinheiro para o exterior. Estava de guarda ao estabelecimento, do lado do passeio, cruzando-se, estático, com os milhares de passeantes que a toda a hora caminhavam pelo local. Não posava no anonimato para os transeuntes, que não evitavam desviar o olhar para o mamarracho ali especado. Havia quem gostasse, havia quem se entediasse com o boneco, nele visse uma exibição de fealdade. As pessoas que ali passavam todos os dias já nem sequer davam conta do cozinheiro que parecia convidá-las a toda a hora para gastar uns cobres na padaria.

Mas durante a madrugada o boneco dormitava em pé, em zelosa vigilância ao estabelecimento que lhe dera vida. Desafiava, com a sua opulência de mau gosto, a paciência de quem nele reparava. Em vez de se habituar com a presença da figura e de lhe fazer uma vénia de indiferença, a sucessiva passagem pelo local espicaçou-lhe a cobiça. Irritou-se, por se irritar com a porcelânica pose do gourmet. Por vezes quis ser um vulgar cleptomaníaco, atirar um tijolo para a padaria, estilhaçando os vidros e furtando, num ápice, a figura do vigilante impassível.

Era uma súbita pulsão cleptomaníaca. Sem laivos de doença, como têm os cleptomaníacos. Apenas uma embirração sem sentido, que aguçava mais ainda a irritação que sentia. Perguntava-se: como me deixo invadir pela irritação ao ser assaltado por uma insignificância? Porque dar mais valor a uma peça decorativa sem vida e perco a beleza de uma dia que está para nascer, deitando para trás das costas a retemperadora aurora que tinge o céu com uma mistura de cores que são a musa inspiradora para retirar o espírito da indolência? Se calhar nem era irritação. Porventura nem era um assomo de cleptomaníaco comportamento o que sentia. Levado pelo instinto de roubar o boneco cozinheiro, apenas pela estética pulsão de o achar senhor dos piores traços da piroseira nacional.

Para cúmulo, estava o boneco de costas voltadas para a rua. Havia ali empregado novo, decerto, desabituado do ritual de sempre – o boneco com a sua cara direccionada para a avenida, esboçando um sorriso cabotino. Agora o boneco ousava estar de costas voltadas para a rua. Suprema falta de educação de um ser inanimado, sentença lavrada pelo seu punho: pelo desplante, merecia o degredo final, ser subtraído à chancela protectora da padaria que um dia despertou para o duvidoso gosto de ficar conhecida pelo boneco achado algures entre a tralha rústica de uma fábrica de porcelanas.

Vem o sossego de um banho que leva as impurezas. Na água espumosa que se esvai pelo ralo da banheira vão os vestígios da irritação que culmina a madrugada. É então que se dá conta que na estética se percorrem caminhos muito diferentes. A sublime conclusão que na estética há muita liberdade individual em jogo. Que não deve ser manietada por julgamentos que são a subjectividade no seu estado mais puro. Há um adágio que ensina: “gostos não se discutem”. Para além do lugar-comum, bem por cima da superioridade estética de que se achava possuído, admitia que os olhos vêm de forma diferente a mesma coisa.

Uma ode à diversidade: que seria dos seus gostos se houvesse uma unanimidade em redor deles? Uma resposta simples: um desvio necessário desses gostos. Seria, então, cleptomaníaco dos seus padrões estéticos, na fuga imperiosa da boçalidade que se apoderaria dele se quisesse ficar abrigado em tais padrões. Ainda que corresse o risco de perfurar a densa epiderme da coerência pessoal.

13.9.05

A fábula do "Estado milagreiro"

As formiguinhas sabem que viver em comunidade afasta papões que, vivessem elas mergulhadas no seu umbigo, iriam ceifar as suas vidas com a facilidade que a sua pequenez individual permite. A sua sobrevivência depende da organização em sociedade. Sabem que têm que pôr em comum os seus interesses, renegar eventuais tentações egocêntricas. Se resvalarem para o egocêntrico, pode ser a atracção pelo abismo de onde jamais conseguirão sair – o fim da linha espera as ovelhas tresmalhadas, sem hipótese de retorno.

Chama-se a isto uma organização em sociedade, que aparece com o manto institucional do milagre contemporâneo que dá pelo nome de Estado. Há os dissidentes da mais variada espécie – os anarquistas convencionais, os anarquistas menos convencionais (os anarco-capitalistas), e até são metidos neste saco os cultores dessa coisa hedionda que é o “neo-liberalismo”. Para os que prezam as virtudes da organização social que se acoberta nas vestes protectoras do Estado, qualquer solução que encolha o tamanho do Estado – e deixe o mercado funcionar em maior medida – é coisa má.

Estes arautos do Estado estão por aí, em todo o lado. Uns, mais sossegados, banqueteiam-se nos lautos manjares que o Estado lhes oferece – as sinecuras, as negociatas, os tráficos de influências. Outros, ideologicamente mais puros, atiram-se com fúria à expansiva globalização, aos excessos de “neo-liberalismo” que emagrecem o Estado que protege os mais fracos das diatribes dos mais fortes. Os puros do estatismo pulam da toca quando acham que um cataclismo teve consequências drásticas porque temos Estado a menos e mercado a mais. Voltou a acontecer a propósito da catástrofe que atingiu o Louisiana e o Mississipi, depois da passagem do furacão Katrina. Um representante da moralidade evangélica do Bloco de Esquerda que escreve aos sábados no Expresso foi o expoente máximo de como se pode confundir a árvore com a floresta:

Ou pagámos, antes, a saúde uns dos outros, a velhice de todos, o futuro dos mais pobres, ou sobra só o instinto de sobrevivência. A este instinto chamamos, hoje, leis de mercado. Só que o mercado, quando nos apanha moribundos, faz o que sabe fazer: devora-nos vivos. E cobra pelo repasto.

Descontando o mau gosto de fazer vingar credos ideológicos à custa da desgraça alheia, Daniel Oliveira revela o mais puro preconceito anti-mercado. É a velha retórica dos antagonistas do capitalismo, que não se cansam de apregoar que todos os males do mundo – e são tantos – têm um denominador comum, o capitalismo desregrado. É como se o capitalismo fosse um abutre, que suga o sangue dos desprotegidos para engrandecer mais ainda os poderosos que vivem no fausto. Como diz Oliveira, o mercado é perverso porque ataca sobretudo quando os fracos estão expostos. Só não se deu ao trabalho de explicar como é que o mercado “cobra pelo repasto”, nem qual o valor da factura.

Por estas bandas é tanto o ódio ao mercado, ao capitalismo, à globalização, que aparecem como defensores do Estado – mesmo de um Estado que se veste com roupagens diferentes dos dogmas por onde eles transitam. Do preconceito não se livram. Continuam a olhar para o mercado, que se supõe ser sinónimo de iniciativa privada, como o inimigo do “povo”. Esquecendo que entre “o povo” há milhares, milhões de pequenos empreendedores que também emprestam o brilho à iniciativa privada que enche o alfobre do nefando capitalismo. Destilam o ódio contra o “grande capital”, as multinacionais que se espalham pelos quatro cantos do mundo e que insistem em oprimir os trabalhadores, em levar os consumidores pelo império da alienação.

Lessem o que não lhes convém, e saberiam que o mercado não é isso. Saberiam que o mercado é o expoente máximo da organização social sem o espartilho das orientações de iluminados que querem impor-se aos demais. O mercado é a organização espontânea, não a organização forçada do Estado que emerge na ilusão dos milagres que consegue operar.

Quem não tiver os seus preconceitos que atire a primeira pedra. Não me repugna revelar alguns dos meus. Um: desconfiar do Estado paternalista que tem sempre a solução milagrosa quando nenhuma solução parece eficaz. Então abrem-se alas ao Estado que, com um toque de Midas, resolve tudo e mais alguma coisa. Pena que, tantas vezes, as coisas fiquem ainda piores depois do Estado intervir. Seria bom que os anacletos e companhia também reconhecessem o seu preconceito anti-mercado que os leva a defender o que, no “purismo” dos seus dogmas, é uma incongruência: o Estado social.

12.9.05

Nostalgia esquecida

Mudança de casa. Por entre o frenesim dos caixotes, dos papéis que estavam guardados sem necessidade, aquela coisa que julgava perdida e foi reencontrada, o cansaço de trajectos sem fim entre a casa que se deixa e a casa prestes a inaugurar, um sentimento de desapossamento quando bato a porta pela última vez. Não foi muito tempo – quatro anos são uma vírgula na vida de uma pessoa. Ou poderá ser muito mais. Se a intensidade desses anos faça deles um tempo espesso, preenchido de um significado que muitas vezes a vacuidade de anos a fio não consegue trazer.

E mesmo assim não consigo encontrar o fio à meada à nostalgia devida. Quando vou a acertar as contas com o tempo passado na casa que deixo para trás, recuso-me a estender o tapete a uma nostalgia que recorde o que de muito bom ficou naquelas paredes. A recusa não é uma porta fechada ao passado, como se fosse mister de esquecer esses momentos. Nem sequer há razão para um bloqueio da memória.

Dou conta que a idade que vai passando traz um esfriamento da alma. Direi melhor: um distanciamento das coisas, mesmo das mais belas, como se houvesse a necessidade de olhar em frente, apenas em frente. Não renego o tempo ido – nem o que traz recordações que se emolduram pela felicidade semeada, nem tão pouco as que ficam no álbum das coisas candidatas ao esquecimento. Um distanciamento frio, mas racional, ponderado. Ainda estou para descobrir se é sintoma bom ou mau. Às vezes receio que o desapossamento das coisas vividas no tempo que ficou para trás sinalize uma gélida existência, dominada pela racionalidade que se recusa a vivificar o que está emoldurado no tempo inamovível. A racionalidade que conduz os sentidos, apelo que mostra o porvir como rota a percorrer.

Ainda assim, é um sentimento estranho. Para quem, anos antes, gastava o tempo com as recordações desenterradas do passado. A glória da nostalgia teve o seu tempo próprio. Desconfio que era o desvelo da imaturidade – e sei lá se com a mistificação presente da maturidade que venho reclamar não calcorreio outra imaturidade que passa sem dar conta. Ou desconfio que mergulhava num pessimismo denso que trazia o pavor do futuro, percorrendo as veredas do tempo ido como tábua de salvação de um amanhã desconhecido. Que interessa sondar o significado da prisão nostálgica em que vivia, se agora esses são tempos de uma lembrança ausente?

Nas contradições que fervilham em cada um de nós, há uma que me consome. Se outrora aplainava o terreno da nostalgia, num acosso permanente pela vida vivida, estranhamente fugia da contemplação das imagens captadas em fotografias. Alguém contemplativo do seu passado, mas com um álbum de retratos que era um tímido punhado de fotografias. Uma nostalgia cultivada apenas pelas imagens guardadas na memória, que desfilavam numa tela projectada na exclusividade da memória. Agora, desprendido dos ventos soprados de outrora, maior apetência para guardar imagens de momentos com significado, como de momentos banais, registados na memória do cartão de uma máquina fotográfica.

As voltas trocadas, as sinuosas curvas que a vida tem que dobrar, trazem este encanto incompreensível: um desencontro entre a nostalgia que então não era cultora do registo de imagens, e a recusa da nostalgia de agora que se reencontra com a pulsão dos álbuns de recordações, imortalizando os instantes na forma de imagens que, quem sabe, voltarão jamais a serem revistas.

9.9.05

Não há animais vadios nas grandes urbes europeias



Começo por dizer que discordo da expressão "animais vadios". A dicotomia animais vadios/animais domésticos é uma falácia, só compreensível pelo pressuposto errado de que tomamos conta dos cães, gatos, periquitos, peixes, tartarugas que vivem connosco. Se deparamos com um animal que vagueia pela rua, sem dono, sobre ele pesa o rótulo de "vadio". Quando são os "vadios" que sublimam a essência da liberdade, não os que vivem no conforto de um lar e são titulados pelo dono que lhes empresta o qualificativo de "domésticos".

Nas deambulações por grandes cidades europeias, tenho reparado que os animais vadios não andam à solta pelas ruas. Estão imaculadas, higiénicas, como se existisse uma zelosa brigada que limpa as ruas de animais vadios. Por onde tenha andado, Europa fora, não vi cães esfaimados em busca de comida nos caixotes do lixo, nem gatos que se escapulem sorrateiramente de carros e transeuntes apressados. Nem testemunhei velhinhas caridosas que depositam restos de comida numa qualquer viela, atraindo uma chusma de gatos que se saciam de uma fome certa.

Há excepções. Animais que andam à solta em parques, sem que sejam vadios. Abrigam-se na frondosa vegetação do parque e sabem que os turistas e passeantes frequentes ficam enternecidos com os bichinhos, retribuindo com alimentos que os sustentam. São os esquilos de St. James Park, em Londres, ou as pombas que pousam o bico na mão de uma criança amedrontada que lhes estende um pouco de pão. São excepções, são atracções turísticas. Não o são cães e gatos sem dono que andam livres pelas ruas. Os mesmos que vemos nas grandes cidades portuguesas e que são perseguidos pelas nefandas brigadas camarárias que os capturam com métodos que são uma violência para quem tem o azar de ser testemunha da caçada.

Se calhar a ausência de animais vadios nas grandes cidades europeias é sinal de maior civilidade. As pessoas estão habituadas a ter animais domésticos, com quem mantêm uma relação de carinho que não é comum entre nós. É habitual que numa residência convivam vários cães e gatos, e não apenas um como é vulgar nos lares portugueses. E talvez também existam serviços que percorrem as ruas em busca de animais tresmalhados, que se convencionou serem uma ameaça à segurança e à higiene públicas. Porventura essas brigadas do fundamentalismo higiénico percorrem as ruas à noite, sem alarido, sem a brutalidade indigna. Para não ferir a susceptibilidade dos transeuntes que se chocam com a captura de um animal que, sabem, está condenado a uma injecção letal se não aparecer alma caridosa a reclamar a sua “propriedade” ao fim de um par de dias.

Há uma excepção maior: Roma. A Piazza Argentina parece um santuário de gatos. Centenas de gatos sem dono estabeleceram uma comunidade dentro de umas ruínas romanas que fizeram a Piazza Argentina conhecida. Haverá um significado para as ruínas. Confesso que o que me chamou à atenção foram os gatos que se passeiam pelas pedras milenares, os que repousam estendidos ao sol de Inverno que lhes aquece os corpos, os que ascendem das catacumbas e se aproximam dos turistas em busca de alimento. Pequenos e grandes, adultos e crias, de todas as cores, zarolhos e mancos, alguns com a cauda semi-cortada, outros exibindo as feridas por cicatrizar, marcas de lutas pelo território ou por uma gata com cio – gatos que têm o seu império naquela praça. Sem serem uma praga que enxameia a cidade eterna, nem perseguidos pelas autoridades embebidas num afã sanitário.

Os gatos da Piazza Argentina são um ex-libris romano. Rivalizam com os vários monumentos que recuam ao tempo da civilização romana, que fazem da cidade um museu vivo. Os puristas do higienismo decerto se chocarão, perturbados com a excepção romana, que permite a abundância de animais vadios sem que nada se faça para os eliminar da vista pública.

Incomodam-me mais espúrios advogados do fundamentalismo higienista. Sobretudo quando procuram provar que animais vadios à solta pelas ruas das cidades são um atentado à saúde pública. Manifestação de maioridade cívica é ser caridoso com esses animais que vagueiam pelas ruas, na incerteza do alimento que chega a horas certas aos seus pares que têm a sorte de serem chamados “animais domésticos”. Civismo é não perseguir estes animais, e não o contrário em nome de um tenebroso fascismo higiénico que se estende, ele sim, que nem uma praga.

8.9.05

Trabalhar de mais afecta a saúde

Adoro a ciência e os cientistas. Pelas descobertas proporcionadas por horas a fio de intensa investigação. É um trabalho árduo. Escolher o alvo, formular as premissas, testar as hipóteses, interpretar os resultados e chegar a conclusões. Que surpreendem, a espaços. Há tempos li algures que um grupo de investigadores chegou à admirável (e conveniente, do ponto de vista marialva) conclusão que olhar para os seios das mulheres diminui a probabilidade de ataques cardíacos. Já temos desculpa para aquelas situações em que o olhar obedece ao instinto irreprimível de descair uns centímetros abaixo da cara de uma mulher avantajada que se cruza no caminho. As nossas caras metades ficarão sossegadas sabendo que o exercício lhes traz a recompensa de tão cedo não enviuvarem.

Agora soube-se que o excesso de trabalho traz dissabores para a saúde dos workoholics compulsivos. Diz o estudo que as pessoas que trabalham horas a fio, por dias consecutivos, têm uma probabilidade maior (63%) de sofrerem doenças incapacitantes antes de chegarem aos sessenta anos. É um panorama alarmante, agora que parecemos viver numa absurda dependência do trabalho. Para muitos, o trabalho é o preenchimento máximo das aspirações pessoais. Para alguns, pelas realizações materiais que o suor do trabalho proporciona; para outros, pela realização pessoal que ilustra uma carreira de sucesso; ainda para outros, expressão de um mundo que envereda pelas perversidades da competição. Já não faz sentido dizer que trabalhamos para viver. Vivemos para o trabalho.

Ao sermos dominados pelas tarefas profissionais, passamos ao lado das fortunas imateriais que, por o serem, são desvalorizadas. Hobbies que escasseiam, tempo livre consumido com o trabalho que não pudemos resolver no horário de expediente. A família sacrificada, filhos que a certa altura vêm nos seus pais completos estranhos, pais que não prestam a atenção que os filhos merecem. Até as relações pessoais se ressentem: muito do diálogo vem no fio dos problemas do trabalho, extinguindo uma relação genuína entre as pessoas que se amam. O trabalho é um intruso da vida pessoal. Sai do escritório e invade os lares. Entra nos poros, e tudo o que transpiramos é trabalho.

Os resultados do estudo podem ter consequências paradoxais para aqueles povos que não são atreitos às virtudes do esforço. Não há contradição com o diagnóstico anterior. É nas sociedades mais avançadas, as que se dizem mais desenvolvidas devido à afluência material, que a doença do trabalho mais se sente. É um problema de excesso. Em contrapartida, outros países pecam por defeito, atormentados por problemas de produtividade. Convencionou-se que esses países trabalham de menos para as suas necessidades. A diferença alonga a distância que os separa dos mais avançados. O problema da produtividade do trabalho não é apenas o da pouca apetência para o esforço: é, sobretudo, o de se trabalhar mal, a inaptidão, a incúria, o desmazelo. É um quadro doloroso: pouco se trabalha, e quando se trabalha é muita a asneira. Com um preço elevado a pagar, o preço de cometer erros que levam mais tempo para corrigir. Mais vale estar quieto do que fazer asneira.

Este é um aspecto curioso do trabalho. Aqui, como em tantas coisas na vida, não é a quantidade que conta. É a qualidade do que se faz. Mal vão certos viciados no trabalho quando ostentam, com orgulho, as maratonas que empreendem nos locais de trabalho. Exibem as horas a fio como medalhas de bom comportamento, exemplos de trabalhadores incansáveis sempre dispostos a darem o seu contributo para a produtividade nacional. Erro de raciocínio: outros que trabalhem metade das horas podem ser mais produtivos. Basta uma agenda organizada, não haver dispersão de tarefas que prejudicam a qualidade do que se faz. E não é preciso gabar-se com as horas tardias a que se sai do escritório: se metade do dia for passado a fazer de conta que se faz qualquer coisa, essa medalha de fiel dedicação à empresa é fogo-fátuo.

Há uma lição a reter neste estudo: jornadas de trabalho prolongadas e cansativas são uma factura para a saúde. O muito que se trabalha hoje (ou se apregoa trabalhar…) terá o preço de encurtar a vida activa dos viciados no trabalho compulsivo. São vidas que se antecipam, qualidade de vida cerceada pela fobia de viver a uma velocidade vertiginosa, que se contagia da pressa do trabalho para a vida pessoal. E como a vida se deve prolongar por mais tempo possível (outra vez, angústias de um agnóstico), viver na dependência cega das exigências do trabalho é meio caminho andado para morrer cedo, ou para viver longo tempo uma vida vegetativa.

É nestas alturas que me aproximo do visionário filósofo Agostinho da Silva, que via no trabalho uma coisa indigna da espécie humana. Não caio nessa visão excessiva. Apenas a vejo como um aviso para os workoholics deste tempo, que padecem de vistas curtas e se consomem na voracidade do instante que acabou de passar.

7.9.05

Um duro golpe no orgulho “tuga”

Não sou dado à lamechice de defender com unhas e dentes o bom nome pátrio. Há os que ficam ofendidos quando a honra lusitana é vituperada por estrangeiros. Na proverbial apetência para desdenhar de nós mesmos, só aos nossos permitimos o luxo de dizer mal da gesta lusitana. Quando são estrangeiros a zombarem de nós, saímos do sério e berramos de pulmões abertos a nossa indignação.

Na revista “Única” do Expresso do último fim-de-semana, vinha notícia de um restaurante português que abriu na exigente e cosmopolita Londres. O nome do restaurante é infeliz – Tugga, adicionando um “g” ao insólito apelido que alguém inventou para a selecção de futebol quando fez triste figura no campeonato do mundo no Japão e na Coreia do Sul. O Tugga é um restaurante de luxo, reza a crónica. Resultou do arrojo de quatro jovens que decidiram largar as carreiras de sucesso na ousadia de uma aventura gastronómica. Invejo-lhes a audácia. Um secreto projecto que guardo na prateleira das coisas de momento irrealizáveis. Por isso a reportagem despertou a minha atenção.

O acolhimento entre os críticos gastronómicos locais não foi o melhor. A jornalista reporta dois testemunhos pouco simpáticos para o restaurante. O crítico do Times entra a matar na sua apreciação: com uma perigosa generalização, quando assevera que Portugal é “um país tão esquecível que ninguém se preocupa em encontrar uma alcunha para ele”; e quando tece uma curiosa reinterpretação da história, anunciando que “há uma teoria que diz que Portugal só teve um império porque estava desesperado para ter sexo”. Quando larga estas generalizações bolorentas e mergulha na idiossincrasia gastronómica, remata com a apreciação “bastante horrorosa” da cozinha nacional, de que diz apenas se aproveitarem os pastéis de nata.

Outro crítico, do Observer, também não foi benévolo. Desta vez não houve teorizações esconsas sobre o ser português, apenas uma apreciação do restaurante, que é ao mesmo tempo um libelo sobre a cozinha lusitana. Tendo detestado o serviço gastronómico do Tugga, o crítico acha que o restaurante se distingue pelo compromisso entre o “armado ao pingarelho e a comida camponesa”. Sem parar, a inclemência cortou a direito para sentenciar que “não é porque os camponeses decidiram fazer orelha de porco em vinagreta que a torna uma invenção gastronómica ”.

Nestas coisas de orgulho nacional sou um pouco apátrida. Vejo com bons olhos a maledicência que nos corrói e faz de nós um povo que se auto-detesta. Um espírito crítico aguçado é o melhor atributo para evitar uma das piores características do homem contemporâneo: o chauvinismo que recupera da bruma da memória nacionalismos demodés, varrendo o passado lamentável de guerras sangrentas feitas em nome de uma grandeza nacional, de exacerbados nacionalismos. Nisto distinguimo-nos de espanhóis, franceses e, em menor medida, alemães e ingleses. Cada qual à sua maneira, todos se acham investidos de uma superioridade divina, os escolhidos, acima do garbo que os outros povos têm direito de exibir.

Mantenho-mo apátrida quando vejo estrangeiros a serem pouco simpáticos com as idiossincrasias nacionais. Não me afectam: porque não me revejo nos aspectos que são alvo da zombaria; e porque é redutor colocar os povos em compartimentos estanques apenas porque estão separados por fronteiras. Apesar disto, não pude deixar de soltar uma sonora gargalhada ao ler as apreciações ásperas dos críticos londrinos. Mais ainda porque são especialistas gastronómicos. Vindo de quem vem, soa a ridículo. Estou à vontade para o afirmar, porque até tenho muita simpatia por British way of life. Exceptuando a horrorosa gastronomia das ilhas britânicas. Claro que nisto da comida entramos no campo da pura subjectividade. Se os ingleses se alambazam com ovos mexidos, salsichas e bacon frito e feijões ao pequeno-almoço, estão no direito de pontuar os seus hábitos dietéticos com este carrossel de colesterol.

Do que conheço da gastronomia britânica, ela fica a perder, e de longe, para a portuguesa. Já sei, serão os hábitos que moldaram o palato que me fazem mais sensível aos prazeres culinários lusitanos. Nem tanto, porque sou aberto a novas experiências gastronómicas, e tenho deparado com boas surpresas, com misturas de ingredientes que seriam impensáveis para os padrões nacionais e que resultam numa excelente combinação. Coisa que nunca encontrei no Reino Unido. É por isso que não compreendo as ácidas apreciações dos críticos citados no Expresso.

Depois há a pérola histórica: com que então fomos para a aventura dos descobrimentos porque estávamos desesperados por sexo? Falam os homens que deixam as inglesas tão insatisfeitas que, quando elas tocam território lusitano, acreditam que chegaram ao paraíso…É caso para dizer: quando as frustrações se acumulam em catadupa, a aspereza tolda o discernimento.

6.9.05

O homem providencial



Num cantinho onde finda a Europa, congeminaram-se perfis com gabarito para o cargo mais relevante, o primeiro entre todos os demais. Vaidades pessoais, desígnios escrevinhados por arquitectos do devir nacional, embates esboçados que fazer correr tinta antes do tempo. De um lado da barricada, um D. Sebastião que vai recusando a sinecura que, dizem estudos de opinião, lhe seria servida em bandeja de ouro, numa vitória cravejada com facilidade. Do outro lado, alguma desorientação. Personalidades “gradas” hesitam, para enfim recusarem a batalha. Não queriam dar a cara por uma derrota previsível. Perante o deserto ameaçador, lá surgiu o velho patriarca, emergindo de um nevoeiro cerrado, avançando para o pleito, com a coragem que faltou aos camaradas mais novos.

E quando se pensava que o homem estava no remanso da sua reforma dourada, ainda teve força para mais um combate – decerto o último. Daquele sector jorrou uma exultação contida. O entusiasmo não é comparável à vaga de fundo que o acompanhou em tempos idos. Soa a falsete. Nem entre os militantes há um apoio unânime. A sua entrada em cena é um acto desesperado, apenas com o fito de impedir que a sebastiânica figura do quadrante rival ocupe o cargo. Para esta gente, o cargo é coutada dos seus. Heresia maior, se viesse a ser detido por alguém que vem de outras paragens. Estranha forma de sentir a democracia. Por detrás da tolerância eleitoral, uma (mal) escondida capa de intolerância anda à solta.

O patriarca, ressuscitado para o derradeiro combate, já se mostrou no seu pior. Espezinhando quem aparecer pela frente como estorvo. O candidato já orou, regurgitando a sua sapiência que não pode merecer a mínima contestação. Não é coisa de agora. É alguém que foi investido de uma sapiência divina, acima de qualquer suspeita. Quantas vezes o disparate se soltou daquela boca, sem que alguém ousasse denunciar a asneira? Agora surge como o salvador. Promete que será um osso duro de roer, um degrau difícil que o adversário que ainda o não é terá que escalar. Será o rival mais difícil de vencer, logo garantia que a sinecura não vai ser oferecida de bandeja ao algarvio que surgir da bruma.

O patriarca também tem a sua faceta sebastiânica. É uma figura sebastiânica contra o sebastianismo pedante que ameaça levar o cargo para o outro lado da barricada. Convém-lhe a máscara providencial. Para arregimentar fiéis e outros não tão entusiasmados, mas que se amedrontam com a possibilidade do adversário vencer a contenda.

Vai ser uma eleição enfadonha. Há a excitação dos comentadores, que nem dormem só de pensar na iguaria de excelência que será o combate entre dois dos maiores protagonistas do passado. Mas é esse o problema: figuras do passado. E se hoje nos auto-punimos pelo atraso em que continuamos mergulhados, o atraso em muito se deve a que não teve a capacidade para, no passado, de lá nos retirar. Uma eleição sem esperança: pela irrelevância da sinecura; pelo regresso aos pecadilhos do passado. Um desesperançado devir, estivesse o porvir do país nas mãos desta eleição.

Uma eleição pela negativa. De um lado e do outro, eleitores vão votar como arma de arremesso que impeça alguém de vencer o combate. Não há-de ser um voto de primeira escolha, antes um voto negativo, um voto contra o outro de quem não se gosta. No rescaldo, o vencedor há-de surgir como “o presidente de todos os portugueses”. Na doce ilusão de que o é, acreditando estar sancionado pelo voto de uma maioria que é, contudo, uma minoria no universo dos que têm direito a voto.

Dizia o outro – o renegado – que não há homens providenciais. Tem razão. Há os que insistem em olhar para o lado e fazer de conta que não. E toda uma turba, a quem a força das conveniências faz alinhar pelo mesmo diapasão, reescreve uma história que ilude o mais ingénuo dos votantes. Vende-se-lhe a ideia de que há mesmo homens providenciais, cercados por uma aura sobre-humana que resolve problemas cuja resolução não está ao alcance do comum dos mortais.

É aqui que a retórica entra com os seus truques: o homem providencial já sentenciou que a sua candidatura tem o objectivo de unir todos os portugueses. Todos os portugueses. Quererá isto dizer que “todos os portugueses” têm que votar no senador vitalício? Dispensem-se as eleições, pois. A vitória está-lhe prometida, na ridícula pretensão de achar que a providencial máscara é um culto a que nenhum cidadão pode escapar. Os desalinhados, essas escassas ovelhas ranhosas, não contam. Há que as votar ao degredo intelectual, elas que impedem o unanimismo fácil e a entronização real de um republicano com tiques monárquicos.

Não fosse adversário do voto negativo, não tivesse um odiozinho de estimação pelo oponente do homem providencial, e pensava duas vezes em votar no seu adversário, só para ter o prazer supremo de contribuir para a derrota do patriarca. A recusa do voto negativo fará de mim – sem surpresa – outra vez abstencionista.

5.9.05

Parque jurássico




Todos os anos, no primeiro fim-de-semana de Setembro, um oásis para antropólogos, etnólogos e biólogos especializados em espécies em extinção. Reúnem-se para os lados do Seixal, onde montam acampamento. Lá encontram um campo de observação de eleição. Passeiam-se, esfuziantes, camaradas de diferentes idades. Uns, de meia-idade e mais idosos, crentes no ideal comunista, vivendo desfasados do tempo, como se a queda do muro de Berlim não tivesse acontecido. Outros, mais jovens, num frémito utópico, na ignorância da história recente.

Mascara-se o evento com uma roupagem “cultural”. Alguns, incautos, dão com os costados na quinta comunista. Dizem que vão lá apenas pela excelência do cartaz cultural. Estão no seu direito. Mas pagam um preço: apanhar com a retórica estafada dos artistas que desfilam no palco, entrecortando as performances musicais com palavras de ordem que acompanham o punho erguido. Pelo meio, esses incautos contribuem para as estatísticas oficiais e distorcidas do partido comunista: cada visitante da festa, um aderente à causa comunista. Mesmo que não depositem o voto no partido da foice e do martelo, acabam por engrossar a estatística que convém ao partido. Balões de oxigénio revigorantes, em tempos de vacas magras e de militância que se exaure com o avançar da idade dos devotos militantes.

Esta foi a primeira festa órfã do grande timoneiro Cunhal. Outra referência – Vasco Gonçalves – feneceu há poucos meses. Adivinhava-se um forte tom nostálgico, com a invocação dos mortos que foram âncora dos militantes comunistas durante tanto tempo (mais Cunhal, pois o camarada Vasco foi um fenómeno episódico). O partido descobriu quadros inéditos de Cunhal, exibidos para cimentar a fidelidade canina que os norteia. O momento alto estava guardado para o último dia. A gravação de uma mensagem do camarada Cunhal, já de voz consumida pela doença que o haveria de levar do mundo dos vivos. Um discurso que não passou das habituais recorrências, dos chavões estafados que levam os camaradas a exultar uma vez mais. Com a novidade das palavras saírem pelas colunas sem a presença corporal do grande timoneiro.

As lágrimas escorreram de muitos militantes que não conseguiram reprimir a emoção. Até de jovenzinhos que vivem cegados pela ilusão de uma história que o não foi, possuídos por um dogmatismo empedernido. Nesse instante descobri que os camaradas, tão críticos de qualquer religiosidade, afinal deixam-se guiar por um teísmo personificado no líder que se ausentou na sua sepultura. Bem vistas as coisas, não há grande diferença – entre as religiões que são denunciadas pelo dogmatismo comunista e esta maneira de cultivar ídolos com pés de barro que se transformam em divindades quando deixam o reino dos vivos. Com um biombo que esconde a deificação: a retórica do colectivo, da causa dos trabalhadores oprimidos pelos arautos do grande capital.

Um séquito de dedicados militantes, numa média de idade que faz da casa comunista um asilo de terceira idade, exibe a crença que se assemelha à fé das religiões ou à mais comezinha crença em mezinhas pagãs. Nem de propósito, no mesmo fim-de-semana, em Vilar de Perdizes, no recôndito Trás-os-Montes, mais um congresso de medicina popular. É aí que se encontram curiosos, endireitas, bruxos e outras espécies do género. Convencionou-se chamar a isto "medicina popular", num estranho albergue espanhol onde tudo cabe. Para gáudio de uma turba desenganada da "medicina convencional", que procura a esperança final em mezinhas de curandeiros e afins.

Uma ponte une comunistas e apaniguados da “medicina alternativa”: a ilusão é um esteio a que se agarram no desencanto do mundo em que vivem. Na doce miragem de uma utopia, acredita-se numa versão salvífica do mundo que apela a divindades obscuras, com métodos que toldam o bom senso e buscam no interior do ser o que de mais sombrio existe. Comunistas e crentes do caldeirão indiferenciado da “medicina alternativa”, irmanados numa crença que, como crença, não se distingue das fés religiosas mais tradicionais.

2.9.05

Pilhagens e desonestidade intelectual (onde o saque de New Orleans encontra uma ponte no "despeito" do poeta Alegre)

Não há adjectivos para os animais (sem ofensa para os ditos) que saqueiam New Orleans depois do cataclismo que devastou a cidade. Não bastava a passagem do furacão, com efeitos destruidores de que não há memória. Nem a perda de vidas – milhares, ao que suspeita. Nem sequer a destruição de lares, deixando inúmeras pessoas sem tecto, no desespero de quem tudo perdeu no sopro assassino dos ventos ciclónicos. Com a desgraça à mostra, os abutres da miséria alheia marcaram encontro para rapinar os despojos que estão à mão, por entre os destroços da cidade levada pelo furacão.

A façanha destes oportunistas sem escrúpulos merecerá análises detalhadas dos estudiosos do comportamento humano. Dará páginas abundantes que reforçam a cartilha dos comportamentos desviantes. Suspeito que alguns, mais condescendentes, encontram justificações para estes comportamentos. Dirão que os saqueadores são pessoas pobres, os excluídos, os eternamente marginalizados. E que agora se vingam, numa necrófaga aliança com a destruidora força da natureza que vergou uma região.

De que servem essas análises sofisticadas? Têm o condão de inverter os termos da questão: vitimam os autores das pilhagens, convocando a compreensão alheia. E punem os que sofreram perdas de vidas de entes queridos e amigos, os que ficaram sem casa e que vêm os seu haveres roubados. Teses que apelam ao benefício de quem andou nas agruras da vida, no limiar da sobrevivência. Pretexto para passar por cima do inalienável direito de propriedade, que deve ser respeitado por cima dessas ideias que legitimam a desresponsabilização dos delinquentes. Teses sem objectividade, absurdas.

Se calhar, os abutres que andam por New Orleans e outras zonas devastadas nem se encaixam no protótipo dos excluídos. Esses, tal como muitos habitantes, tentaram fugir do cataclismo. E se não conseguiram, acolheram-se em abrigos para escaparem da intempérie assassina. À solta pelas ruas, os profissionais do crime duro, mostrando como a utopia da vida em comunidade é isso mesmo, uma utopia sem destino porque um punhado de ovelhas tresmalhadas derruba os alicerces da confiança que sustentam a vida em sociedade. Ao mesmo tempo, a exibição da perfídia que sinaliza a natureza humana. Ocasião para corroborar o pessimismo histórico que traça o percurso humano, ainda que se diga que estes são comportamentos de excepção. Decerto. Mas os suficientes para dar razão o adágio que diz que num cesto de maçãs sãs, uma podre basta para contagiar as demais.

Estes ascetas do mal vivem cercados pela desonestidade intelectual. Se não fossem marcados por este estigma, o oportunismo deplorável de fazerem fortuna com a desgraça alheia seria reprimido. É aqui que se tece a ponte com a desonestidade intelectual dos entusiasmados apoiantes da geriátrica candidatura presidencial de Soares. Quando analisam a desistência do poeta Alegre e esmiúçam o seu condoído discurso, acusam o abortado candidato de despeito.

Não tenho procuração do poeta, nem tão pouco simpatia pessoal por ele. Ter sido ou não candidato, em vez do patriarca socialista ou como seu concorrente, é-me indiferente. Tão indiferente como a anunciada candidatura do homem de Boliqueime, tão messiânica como a de Soares. Por cima das corriqueiras análises que entretêm comentadores políticos, mais importantes os sentimentos que se ligam a valores que enchem a vida de significado. Se houvesse dúvidas que a política se furta ao código de conduta desses valores, a rasteira que o velho Soares pregou ao seu “amigo” poeta fica para os anais. Que o poeta tenha mostrado “despeito” com as palavras desagradáveis que reservou ao seu “amigo” só é surpresa para os que se deixam cegar pelo brilho opaco desta candidatura de recurso que vai buscar aos fundilhos do mais deplorável do regime o seu protagonista mor.

Só muita desonestidade intelectual explica a crítica áspera a Manuel Alegre. Os que dão o peito às balas em nome do patriarca que quer um terceiro mandato em Belém são aqueles que, fossem feridos pela traição de um amigo de longa data, decerto não ficariam calados. Então porque se indignam?