26.7.05

Da pré-história do Felino (I): Soares ameaça outra vez: a presidência nos horizontes

(De vez em quando vou resgatar textos arquivados que foram escritos antes do Felino ter nascido. A publicação faz sentido quando esses textos se reencontrarem com a actualidade, fruto dos imponderáveis do destino)

(Escrito em 8 de Maio de 2003)

Mário Soares lançou para o ar o seu sentimento: não se importaria de voltar a ser presidente da república. Não se podem encontrar motivos de admiração pelo facto do senhor já contar 78 anos – e, portanto, se fosse eleito iniciar o seu mandato com 81 anos; nem menos não se importaria de regressar à presidência, dando de barato que ganha as eleições. Também aqui a estupefacção fica para os desatentos: tolerância e convivência com as regras do jogo democrático não são apanágio de Soares. Talvez lhe ficasse melhor confidenciar, a quem o quis ouvir, que gostaria de voltar a ser candidato à presidência da república.

Como interpretar o “aviso” de Soares? Levá-lo a sério? Ou apenas encará-lo na óptica de quem se tem entretido a lançar a confusão na vida política nacional, alimentando mais uma acha para a fogueira que começa a ser incendiada a três anos de distância – a sucessão de Sampaio?

Soares é a figura tutelar do PS, o símbolo paternal que liga este partido a uma espécie de complexo de Édipo com sinal sexual invertido. Desde os tempos conturbados da governação de Guterres, em especial os últimos anos de caos e de anomia, Soares desdobrou-se em intervenções nas quais não se coíbe de lançar farpas venenosas ao PS e a quem gravitou na órbita de Guterres. Qual a interpretação desta rebeldia política e ideológica (visível nos seus artigos de opinião, com incisivas críticas à globalização, quase pautando a sua conduta por parâmetros semelhantes aos do Bloco de Esquerda)?

Será este activismo mediático uma estratégia bem preparada para afastar do caminho potenciais rivais ao lugar que Soares ambiciona daqui a três anos? Tirando o tapete a Guterres, e não se vendo quem pode dentro da família socialista aparecer como alternativa presidenciável, estará Soares a armadilhar as possibilidades do anterior primeiro-ministro? Ou apenas um sinal da teoria do caos que, ao nível interno e com particular intensidade nas lutas intestinas dentro do PS, o anterior presidente da república vem alimentando?

Se o aviso que Soares deixou cair há dias for levado a sério, seria curioso verificar que um país que se quer rejuvenescido, onde se sente cada vez mais a necessidade de dar lugar a novas gerações de políticos que rompam com uma mentalidade ancilosada que não abona em favor da governação, seria paradoxal que o futuro presidente da república voltasse a ser Soares. Não que se deva dar crédito à figura presidencial, por mais que se argumente que a simples magistratura de influência funciona como um contra-poder que equilibra possíveis excessos do poder executivo. O presidente da república pouco mais tem reservado do que um lugar simbólico no nosso sistema político.

O que está em causa é o simbolismo da questão. É o regressar ao activo de um dinossauro, quando se pensava que a eleição para o Parlamento Europeu tivesse sido o seu último acto, a sua reforma dourada. Aqui as coisas correram-lhe mal. Vaidoso e ambicioso, desejou a presidência desta instituição da União Europeia. As regras internas de eleição do presidente do Parlamento Europeu ditavam que fosse escolhida uma personalidade entre a família política europeia que tivesse alcançado mais votos. O Partido Popular Europeu estava nesta situação, tendo designado Nicole Lafontainne para o cargo. Mau perdedor, Soares passou por cima dos costumes instituídos naquela instituição e teve a deselegância de comentar o discurso de recém empossada presidente do Parlamento Europeu com uma daquelas manifestações de intolerância que lhe são peculiares: “foi um discurso típico de uma dona de casa”.

Não tendo sido presidente de uma instituição europeia, parece ter adiado os seus projectos de reforma política. Quererá sair em grande? Mas agora apenas à escala nacional, onde será bem fácil aproveitar-se do unanimismo que a sua figura consegue reunir, para assim conquistar a presidência da república?

O que me causa espanto é como a insistência numa personalidade vetusta, que com alguma simpatia se poderia ver (não é o meu caso) como um espécie de património da vida democrática portuguesa, para a fazer regressar a Belém. Sinal dos tempos que passam, da crise de figuras com carisma para mobilizar o eleitorado. E sinal de que a desejável lufada de ar fresco será adiada por mais algum tempo.

Há quem invoque o exemplo francês para mostrar como a idade não é um óbice para novo cargo presidencial de Soares: Mitterrand em França. Pois, mas convém não esquecer duas coisas muito importantes: que não se deve comparar o que não é comparável, já que nem Portugal é a França, nem Soares é um clone de Mitterrand; e que, mesmo insistindo na comparação, veja-se o resultado do exercício de poder de Mitterrand em França, sobretudo tudo o que de obscuro se ficou a saber após a sua morte.

3 comentários:

Anónimo disse...

Parabéns pela antecipação.
Ainda estou "estupfaciente" com a possibilidade deste dinossauro se candidatar a Presidente.
Numa altura em que tanto precisamos de renovar a classe política, aparece o simbolo máximo do nosso passado político recente para salvar a pátria.
Acho que Soares teve um papel importante na nossa história, mas neste momento deve aproveitar para usufruír da reforma e, se está tão interessado em meter-se na política, então que se fique pelos artigos nos jornais.
A confirmar-se a sua candidatura, será um passo atrás no tão necessário desenvolvimento da nossa política.
E para mim, se vier Cavaco a diferença não será muito grande. Compreendo a sua legitimidade, se se candidatar, mas será também mais um que vem usufruír da presidência como compensação pelos "nobres serviços prestados à nação". Quais? O mais arrogante 1º ministro que este país teve depois do 25 de Abril.
Está na hora de colocar esta classe política no seu lugar: na reforma. Venham outros! Pior é difícil.
Ponte Vasco da Gama

PVM disse...

Mais achas para a fogueira: se soares foi eleito (improvável…mas nunca se sabe), vai acumular a reforma de PR com o salário de PR? É que…nunca se sabe!
Há aqueles que defendem que a candidatura de Soares é uma lufada de ar fresco
(por exemplo, aqui: http://forumsede.blogspot.com/2005/07/h-que-dize-lo-com-frontalidade.html).
É de rir até não aguentar!
Paulo Vila Maior

Anónimo disse...

Sempre disse, em tom de brincadeira, que no (im)possível dia que Santana Lopes fosse primeiro ministro, Portugal estaria a "bater no fundo". Afinal algo pior pode acontecer; por incrível que pareça, Portugal apresta-se para bater Júlio Verne nas explorações impossíveis ao fundo da terra... O que me espanta ainda mais é a possível resposta a duas perguntas ao mais puro exercício de egoísmo nacional (talvez o segundo desporto mais popular a seguir à inveja!):
1- como é que um Sr. com 86 anos no final de um improvável novo mandato conseguiria acordar todos os dias a pensar no melhor para o futuro do seu país? Com todo o respeito que um ser humano merece...o 1º pensamento que qualquer pessoa nesta idade tem é um exercício natural diário de sobrevivência e felicidade por ainda cá estar...
2- A escolha (ou imposição) da figura deste Sr. por José Sócatres apressa-me um outro pensamento ainda mais ingénuo: não foi a pensar no melhor candidato PS para o futuro de Portugal, mas sim no único que se afigura como possível de rivalizar com Cavaco Silva. É triste...
P.S.- Tentem explicar esta situação a uma criança e observem-se no papel ridículo que desempenhamos!