14.6.05

No espólio de último 10 de Junho sampaiês: a vertigem das condecorações e a mania das grandezas

O expoente máximo da portugalidade, o 10 de Junho. Dia em que o orgulho pátrio atinge o zénite. Emproam-se as almas do alto do seu brio nacionalista, zarpando em alcateia para a cidade onde decorrem as comemorações oficiais do dia do lusitano escol. É momento importante: afinal tanto se zurze contra desgraçados que não se cansam de alfinetar a auto-estima nacional, insistindo na mediocridade do luso povo, que o dia que celebra o cimento da portugalidade deve ser enaltecido com toda a energia.

É uma espécie de festejos do 25 de Abril, mas sem a carga ideológica que certos quadrantes gostam de imprimir à data em que a vetusta ditadura caiu. Mais abrangente, procurando abrigar todo o arco político e abraçar a população sem olhar a diferenças de cor política. Um dia grandioso, em que o mestre-de-cerimónias – o presidente da república – tem um dos raros momentos de protagonismo ao longo do mandato. Dia de comendas distribuídas por uma generosa lista de “personalidades” que se distinguiram pelo serviço público, por feitos pessoais que tanto enobreceram o brio pátrio. Há as condecorações presidenciais, a expressão de gratidão que o “presidente de todos os portugueses” exibe em nome dos representados.

O desfile das comendas, em cerimónia cheia de solenidade, alimenta os anais do ridículo. Há humoristas que gozam com o protocolo do regime: tantos têm sido os agraciados que hoje quase não sobram cidadãos nacionais a quem oferecer as condecorações. Todos os anos critérios duvidosos. Claro que o império da subjectividade encontra aqui terreno fértil. As escolhas do presidente são aceitáveis ou criticáveis, dependendo da opinião de quem as avalia. No rescaldo de anos sucessivos de cerimonial, os festejos banalizaram-se, as comendas colocadas ao pescoço dos premiados são tão triviais que perderam o significado de grandeza que se lhes quer atribuir.

É um estranho caldeirão onde cabem personalidades conhecidas por contributos díspares: enquanto de uns não se duvida o mérito, de outros questiona-se a oportunidade, quando mesmo as razões que os levam a receber a condecoração. E quando se misturam maçãs podres com as boas, diz a química que estas acabam por apodrecer pelo contágio que tem origem nas fétidas. É o simbolismo da cerimónia que aparece afectado: ao misturar no mesmo caldeirão ambos os tipos, os que tiveram contributos de destaque acabam por não ter a relevância que merecem, ofuscados pela comenda distribuída a pessoas que se fica sem saber porque são agraciadas.

O ritual do 10 de Junho, com a sua solenidade republicana, em pouco se diferencia dos costumes nobiliárquicos típicos das monarquias. Haverá diferenças, decerto. Na monarquia as comendas são distribuídas segundo critérios de linhagem familiar, tributários de uma sucessão dinástica que mancha de anacronismo as monarquias que se dizem modernas. Mas há um elo entre as cerimónias de embelezamento dos regimes republicano e monárquico: a solenidade da ocasião, a grandeza imprimida aos festejos, o orgulho dos galardoados. Em ambos os casos, um ritual, com sinais e códigos que apartam repúblicas de monarquias, mas um ritual de dignificação, o cimento identitário de uma comunidade.

Talvez por ainda não ter sido alvo de semelhante manifestação de enceramento do ego, o presidente da Portugal Telecom, Horta e Costa, decidiu comprar uma comenda nobiliárquica. Fez-se “duque-de-qualquer-coisa” e agora surge em público com a aura do “nobre novo” que se enganou no país para o ser. Alguém diga à pavoneada personagem que aqui vivemos em república, não numa monarquia que é feita de castas de privilegiados, de condes, duques e quejandos. Ou que metam uma cunha por ele: se chegou ao estrelato empresarial com colocação partidária através de um dos partidos do bloco central, alguém lhe faça o favor de encomendar a condecoração para 10 de Junho do ano de graça de 2006. Tanto que, por essa altura, desconfiam os analistas políticos que haverá pela primeira vez um presidente da república não socialista.

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