2.6.05

Caixas de velocidades

Parado no semáforo vermelho, espero autorização para arrancar. Quando a luz verde se acende, embraio, meto a primeira velocidade, desembraio e arranco. Segue-se uma recta que convida a desmultiplicar segunda, terceira, quarta, quinta. Um gesto mecânico para quem conduz. Ponho-me a pensar no número de passagens de caixa de velocidades que fazemos ao longo de um dia passado ao volante. De serem gestos automáticos nem damos conta, como se o braço direito se estendesse na espontaneidade de saber que naquele preciso momento chegou a vez de conjugar a embraiagem com a caixa de velocidades. Uma coreografia sem registo, obrigatória para avançar a marcha.

Numa era em que procuramos ajudas na tecnologia para estimular o comodismo, alguns advogam as vantagens das caixas automáticas. Dizem: é uma condução mais relaxada. O pé esquerdo repousa a toda a hora, sem ser chamado a fazer os movimentos no pedal da embraiagem, que nem existe. A mão direita não tem que se deslocar do volante até à caixa de velocidades, num movimento repetitivo, cansativo.

Do outro lado, os puristas, adeptos do mais convencional que existe na indústria automóvel. Insistem que o prazer da condução é feito de pequenos mas importantes gestos que são o património genético da condução automóvel. Consideram que a alavanca da caixa de velocidades deve ser manuseada com frequência, para sentir o pulsar do motor, para que a condução não se torne monótona. Para os que gostam de velocidades e sensações fortes na estrada, a caixa manual é um must. Entregar-lhes em mão um carro com caixa automática é um acto de castração.

A digressão pelas caixas de velocidades é pretexto para algum disparate. Para pôr em evidência como um tema corriqueiro, mesmo banal, afinal se presta a uma deliciosa especulação de simbolismos. De repente, embrenhado nestes pensamentos que pouco mais são do que vácuos, dei comigo a indagar das virtudes das caixas manuais e das caixas automáticas. Arranjei argumento poderoso para defender as caixas manuais. Mas chamo a atenção às feministas de serviço e aos cultores do pensamento politicamente correcto que o argumentário que se segue é marialva e, quem sabe, tonto.

Assumo a posição de um consumidor de veículos que leva a peito a sua masculinidade. Um macho latino na sua essência consabida – orgulhoso dos atributos másculos, desdenhando as características efeminadas que revelam fraqueza de espírito. Nas suas vistas curtas (e enviesadas), a varonil personagem equaciona a troca de automóvel. Como acha que isto de conduzir máquinas impelidas a motores de propulsão é coisa de macho, terreno onde a intrusão das mulheres é motivo para as mazelas que se vêm estrada fora, tirou as medidas aos atributos do novo automóvel que vai comprar. De um característica não prescinde: uma caixa de velocidades manual.

Na sua cabeça paira a ideia que a caixa manual é o instrumento fálico do automóvel. Garboso da sua masculinidade, cioso dos sinais exteriores que a manifestam, recusa-se a conduzir um carro que seja a negação da masculinidade expressa numa caixa automática. Abjura o argumento de que a condução se torna mais confortável: coisa que abichana a arte do volante. Fiel às tradições do marialvismo, não se imagina a conduzir carro desprovido do seu falo, da sua caixa manual.

Desconfiando das maneiras alternativas de estar em sociedade, suspeita que um carro com caixa automática ilustra a feminilidade de uma coisa que tem tudo de máscula. O carro, o automóvel, o veículo – seja qual for o nome que se lhe dê, é sempre no masculino. Mesmo que se lhe chame “a máquina”, já aqui no feminino, a palavra máquina é a expressão viva do género masculino, pela brutalidade de processos, pela insensibilidade de tratamento, características que se apartam da feminilidade. Rejeita as caixas automáticas: ou porque lhe cheiram à efeminização do carro, território consagrado da masculinidade marialva, ou porque nelas vê um desvio homossexual que também renega.

Regressa ao prolongamento fálico que encontra na manete da caixa de velocidades manual. Como macho que se gaba de o ser, o que pior lhe poderia acontecer seria a castração. Ver-se num carro com caixa automática é sentir-se destituído da orgulhosa marca da masculinidade, a fálica condição que eleva o homem ao estatuto de sexo forte. Um passo breve o separa da sentença: carros com caixa automática ou são para senhoras, ou para homens arrependidos de o serem, ou para homossexuais que assumem a frustração de não serem mulheres, ou para amibas acobertados no comodismo de uma condução sem sal.

Mas também é verdade que esta personagem está rodeada de incontáveis preconceitos que lhe toldam a análise!

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