23.5.05

O glamour de Cannes

Durante mais de uma semana tive um pequeno-almoço acompanhado de imagens do festival de cinema de Cannes. A Euronews preencheu a afamada rubrica “no comments” (imagens que desfilam num silêncio cortante que diz mais que mil palavras) com o desfile de personagens cinematográficas que passaram por Cannes.

É interessante que a rivalidade entre as indústrias cinematográficas de Hollywood e da Europa se esbata num ténue fio quando as circunstâncias apelam à solenidade, à homenagem aos actores e realizadores que protagonizam a arte. Em rigor, não faz sentido falar de “indústria europeia”. Ela não é capaz de rivalizar com a produção milionária e abundante que chega do outro lado do Atlântico. E na Europa há várias correntes, fenómeno que afasta as pretensões de unidade cinematográfica europeia.

Tirando os casos de actores e realizadores que se deixam seduzir pelos holofotes hollywoodescos, a rivalidade entre europeus e norte-americanos é visível. Os tiques de deslumbramento da indústria de Hollywood são, em regra, renegados pelos europeus. É costume ver nestes realizadores, e nos actores que os servem, o manifesto do anti-americanismo na sua vertente cinematográfica. Desdenham da espectacularidade do cinema importado dos Estados Unidos, duvidam da sua qualificação como arte. No império dos efeitos especiais – arte sublimada em Hollywood – insurgem-se contra a instrumentalização do cinema, que perde atributos argumentativos e se enleia nas teias dos efeitos balsâmicos que a informática deixa pôr na tela. O modo de viver é rejeitado pelos europeus: não gostam do voyeurismo que encadeia os famosos de Hollywood; acusam-nos de se pavonearem na dependência dos tiques de luxo que exalam, como se cavassem mais ainda o fosso que os separa dos comuns mortais.

E no entanto, quando é chegado o momento de ver o público massajar os seus egos de artistas, os europeus do cinema não ficam atrás no gosto pelo glamour. É a mesma passadeira vermelha que se estende diante dos seus pés. Os mesmos instantes que se demoram à frente das objectivas de fotógrafos papparazzi, com aquele ar de frete que esconde o frémito pelas fotografias que hão-de encher páginas e páginas da imprensa de todos os calibres. Fica para trás das costas a retórica que condena a atracção das figuras hollywoodescas pelo esplendor do luxo, pelas luzes da ribalta, pelos gritos histéricos dos admiradores que esperam horas a fio para captarem uma breve imagem ao vivo dos seus heróis.

O formalismo das vestes, outra crítica sacrossanta, vira-se contra eles. Muitos recusam-se a trajar o “obrigatório” smoking. Mas aperaltam-se à sua maneira – roupas negras, ar negligé, a impressão que são descuidados com a imagem e que não é preciso cultivar o respeito pela pompa da cerimónia. Fazem o seu próprio ritual de solenidade, no que não se conseguem desprender do formalismo que criticam nos que perpetuam os sinais e valores que dominam a indústria.

Gostam de prémios. Adivinho-os a sedimentar expectativas sobre a eleição do júri. A sonharem com o momento mágico em que o seu nome ecoa pela sala do auditório, na expressão do júri competente que os agraciou com a distinção. São, eles também, o nutriente de uma indústria que alimenta uma competição acérrima, desvirtuando a essência da arte em que o cinema se quis converter. Na arte – em todas as suas expressões – deviam ser rejeitados certames que confluem na escolha do primus inter pares. Porque a competição desafina a essência da arte; porque a arte é o terreno de eleição da subjectividade, e é arriscado que a arte seja condicionada para o futuro pelo juízo (também subjectivo, e quantas vezes interessado) de um júri que decide prémios.

Que me recorde, não há casos de cineastas e de actores que tenham recusado um prémio num destes festivais. Compreende-se: estes prémios embelezam o curriculum; são o alfobre onde germinam novas oportunidades; adensam os números das contas bancárias; emproam a honra e o reconhecimento público dos vencedores. São o esteio da ambição de cada um. Pena que não haja pedradas no charco como Herberto Hélder, o poeta que anunciou, a quem o quis ouvir, que não aceitará nenhum prémio que lhe decidam dar.

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