28.4.05

Quase sem dar conta, desfaz-se o mito da igualdade

É um legado persistente da revolução francesa. O tríptico da liberdade, igualdade, fraternidade. Na sua recriação contemporânea, a ênfase está na igualdade. Mais uma influência das certezas absolutas impingidas pelos quadrantes à esquerda, somos educados para destacar o valor da igualdade. Mais importante do que a liberdade (a fraternidade é só um resquício do lirismo emprestado à revolução francesa; entretanto caiu em desuso), somos instruídos na obrigação de tutelar a igualdade. Somos todos iguais. Desde a nascença até à morte. Uma igualdade decretada à força, ainda que ela seja contrariada pela observação da realidade, pelas condições diferentes que a natureza das coisas impregna à existência de todas as pessoas.

Vem isto a propósito da indignação que varreu o país por causa da libertação dos homicidas de um agente da Polícia Judiciária. As curvas sinuosas das manobras processuais que enxameiam a justiça possibilitaram a flagrante injustiça. Os indivíduos já teriam sido julgados e condenados pelo crime. Por um qualquer deslize de um magistrado, um prazo foi ultrapassado. No dia seguinte, os criminosos estavam à solta. Logo se ergueu um coro de protesto contra esta não justiça. Contra a justiça que acautela mais os detalhes processuais, se perde em pormenores técnicos e se esquece da sua essência – fazer justiça. Outras vozes viraram-se ferozmente contra os juízes. Que são relapsos, que trabalham pouco e mal. Que as suas funções exigem um acrescento de responsabilidade que impeça deslizes como este, que franqueou as portas da liberdade a quem não a merecia.

Não vou entrar nos meandros labirínticos da justiça (ou da falta dela). Temos especialista que já dissertou com abundância sobre a matéria, do alto da sua sapiência (outro guardião da verdade absoluta, o Prof. Boaventura). Pego no assunto para sublinhar como temos um povo que, do alto da sua indignação, distraidamente não percebe como se envolve num manto de contradições. Não é este o povo que está sempre com o valor da igualdade na ponta da língua? Não é este o povo que corre em socorro dos desfavorecidos, por serem as vítimas da iniquidade que nega o supremo valor da igualdade? Como entender a azáfama da censura social? Há que admitir, erros processuais como o que permitiu a libertação dos carrascos do agente da PJ são deploráveis. Mas nota-se, no caso, uma censura social ainda mais frenética porque a vítima foi um agente da autoridade.

Se a vítima tivesse sido uma pessoa anónima tudo isto passaria em branco – ou o alarido seria menor. A câmara ensurdecedora do ruído social, com os dotes apimentados da comunicação social, ampliou os efeitos do erro cometido pelo magistrado. Como estava em questão o assassínio de um polícia, o povo acha que a justiça deve ser mais implacável. Fiquei com a impressão que temos medidas diferentes para tratar casos que são iguais. Quando o assassinado é um agente da autoridade, a mão da justiça deve cair sobe o criminoso com o peso brutal de um bulldozer. Se a vítima não fizer parte do corpo policial, os juízes devem ser mais brandos. É aqui que a pergunta surge, inevitável: as leis são gerais e abstractas, como se ensina? Afinal somos todos iguais aos olhos da lei, ou há quem seja mais igual apenas porque usa uma farda?

O protesto social faz sentido quando os erros judiciais são tão flagrantes que fica à vista a denegação da justiça. O que deixa de fazer sentido é a discriminação que a sociedade faz em função da qualidade das vítimas. Como se fosse necessário dar guarida à ideia de que os crimes devem ter uma sanção mais dura quando as vítimas são agentes da autoridade.

É curioso que o povo assim pense. Primeiro, porque é o mesmo povo que suspeita sempre das polícias (quantas vezes os polícias são maltratados, porque perseguem o que o povinho considera ser o “crime menor”?). Invertendo o comportamento, quando chega o momento de fazer cair o peso da censura social, através dos julgadores que existem nos tribunais, esse mesmo povo pensa (?) que os polícias devem ter uma protecção especial, que os crimes de que sejam vítimas devem ser duramente punidos. Nem dão conta da desorientação em que mergulham!

Segundo, com esta atitude são os fautores de algo que muito me apraz. Apesar de não perceberem os efeitos da incoerência, são os primeiros a contribuir para desmontar o mito da igualdade. Por mais que a retórica oficial nos eduque na exigência de velar pela igualdade, são estes actos corriqueiros, com o alto patrocínio da “censura social”, que acabam por fazer cair a máscara: a igualdade é um simples mito.

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