6.4.05

O reaccionário compulsivo

Chamam-lhe reaccionário, conservador, ultra-liberal. Por vezes, apanha com rótulos menos simpáticos, aos quais não dá atenção por falta de credibilidade dos extremistas que o endossam: extrema-direita.

A etimologia fornece uma ajuda. Reaccionário, no sentido de reagir contra correntes ideológicas que dominam a paisagem. Quando se fala do domínio tentacular da globalização, há um contraponto na comunicação social: como as esquerdas pairam sobre a consciência colectiva, indicando as soluções óbvias que não merecem a menor contestação. As coisas só podem ser vistas da forma como eles as encaram. Não há alternativa credível. E quem ousar pautar a sua conduta pela dissonância, está condenado ao ultraje e à intolerância das esquerdas que, por ironia, chamam a si o património da tolerância. A retórica não basta. A prática afasta-as da retórica que embeleza a postura com que surgem em público.

É um reaccionário compulsivo. Contra esta superintendência abusiva. Apetece ser a voz discordante, o desalinhado do coro afinado que aceita os axiomas politicamente correctos. Por vezes interroga-se: será apenas um aguçado espírito de contradição que o leva a antagonizar os ventos dominantes? Não, porque não abdica das referências que alicerçam um sentir ideológico. Admite que o situacionismo lhe causa alergia, motiva-o para a reacção compulsiva que, qual anti-corpo, o leva a ser adversário dos quadrantes do “bem pensar”. Não está na orfandade ideológica.

Conservador? De todo! Um conservador quer perpetuar os traços que divinizam o mundo em que vivemos. O reaccionário compulsivo rompe com o estado de coisas. Não aceita os postulados que manifestam a vivência de uma larga franja da população. Não quer que se continue a misturar religiosidade com governação. Nem lhe é simpática a ideia de o indivíduo se manter agrilhoado a imperativos metafísicos. Desdenha as soluções que são o mal menor. Para ele, é inadmissível que certas figuras que foram condenadas pelo julgamento popular das urnas possam ressuscitar para a vida pública, como se estivessem recauchutadas pelo véu da ignorância que o passar do tempo traz à memória de quem elege.

De direita? O reaccionário compulsivo não se identifica com a direita situacionista. A direita que continua a perfilhar valores que ele não aceita – a autoridade sobre o indivíduo, o império de deus, a intocabilidade da família, o valor supremo da pátria. Uma corrente que enaltece um Estado forte: proteccionista quando a debilidade dos interesses nacionais é exposta pela abertura à concorrência externa; intervencionista quando a desdita atinge pessoas ou empresas, como se fosse a entidade paternal sempre na retaguarda quando a adversidade irrompe; um Estado assistencialista, porque está na moda a direita fazer de conta que incorporou os “valores sociais” que sempre foram traço identitário das esquerdas.

Ultra-liberal? O reaccionário compulsivo não se arreda do rótulo. Não se revê inteiramente na catalogação, mas de todas as alvitradas é a que menos se afasta da sua forma de encarar o mundo. Acredita no império do ser humano. É um individualista radical. Rejeita as soluções que fazem crer que o indivíduo deve ceder nos seus interesses quando são invocados os mais altos interesses do colectivo. Vê nesta argumentação um embuste: o caminho para certos indivíduos, que se apropriam do poder político, exercerem o poder sobre os demais, com a sua complacência. O reaccionário compulsivo é mais do que ultra-liberal: estes aceitam um Estado mínimo; o reaccionário compulsivo é um utópico que acredita na diluição do Estado.

O reaccionário compulsivo presta tributo ao valor da tolerância. Gosta de discutir ideias. Tem as suas, e tenta desmontar a racionalidade das ideias que lhe são rivais. Sempre no respeito pelas ideias alheias, num trajecto necessário para a compreensão recíproca. Só não tolera a intolerância, mais ainda quando vem acobertada por uma capa de máxima tolerância. Aceita comportamentos sociais alternativos – legalização das drogas, homossexualidade alheia –, o que o separa do conservadorismo e da direita tradicional.

Continua a sofrer incómodos arrepios quando as esquerdas aparecem em público emproando certezas incontestáveis. A sua reacção é fermentada por essas convicções inabaláveis. Quanto mais se edifica a eticidade irrefutável das esquerdas, maior é a vertigem pela divergência. O que o encerra numa contradição: ferido pelas certezas e pela suposta superioridade moral das esquerdas, na divergência acha-se possuído por certezas que são o tapete que estende a contestação à intolerância que vem do outro lado. O que lhe traz um desconforto irreprimível, preso aos mesmos artefactos que condena em quem o leva à dissonância: também ele se vê acometido pela doença das certezas.

Sem comentários: