27.4.05

O cínico optimista

Categoria bizarra. Lógico seria associar o cinismo a um pessimista militante. Ou o optimismo a alguém desprendido de sentimentos esconsos como o cinismo. Ele sabe que ser cínico é uma atitude desconstrutiva. Descomprometido de tudo, apenas atento aos achaques da sua consciência, aprendeu a ser cínico como defesa contra o exterior a si. Também a vida lhe ensinou que o cepticismo metódico (que redundava numa desconfiança permanente do mundo, no pessimismo recorrente) era penoso. Arrastava-o para o mundo sombrio, para as trevas que deixavam as marcas pungentes de um passado cercado por ironias vãs. Exangue, ficava desmotivado para encarar de frente os dias que estão na agenda do porvir.

Achou-se numa encruzilhada. Não queria prescindir da deriva niilista que o inscrevia na rota do pessimismo. Ao mesmo tempo, afogueado pelo mal-estar que o dominava. Um apelo para um caminho diferente. Um chamamento a ver o mundo com outros olhos. Ver nas coisas tenebrosas que preenchiam o mundo sombrio em que vivia coisas com a sua beleza. Era a quadratura do círculo que tinha que desvendar para se achar imerso noutra vivência. Ter a coragem – ou a covardia – de saber ler os sinais positivos nas coisas que estava habituado a trazer para o rol do cepticismo.

A chave para o dilema era tornar-se cínico. Tinha que alterar a maneira de encarar o mundo, num encontro forçado com o optimismo. O que convocava o cinismo. Cinismo com os outros, com o mundo que o rodeia. E cinismo com o seu eu. Sem saber se a redundância de si mesmo, mergulhado nesta deriva de cinismo optimista, não era uma caricatura daquilo que desdenhava nos outros. Aprender a ser mais um, sem ter o pretensiosismo de se achar tão diferente dos outros, como se deificasse a si mesmo. Aterrar, deixar de vogar sobre os outros como se fosse o observador privilegiado acima das suspeitas mundanas que fazem de todos nós simples mortais.

Seria um exercício de civilização de si mesmo. Um esforço de socialização. Na peugada do grupo a que pertence, num desassombro que o levava a desprender-se do espartilho individualista. Do espartilho que, por confusão, os outros por vezes viam como um acesso furioso de egoísmo.

Estava no limiar da transformação. Na charneira metódica de deixar de ser o que sempre foi para enveredar por uma estrada diferente. Por necessidade ou por convicção, não lhe interessava saber. Para não mergulhar em efabulações que só traziam perda de tempo. Tinha chegado o momento do pragmatismo. Embarcar nos usos e costumes de todos os outros, perder a chama alternativa, perder o rasto à teimosia de ser diferente. Encontrava-se perante este dilema: perguntava se a insistência no “ser diferente dos outros” não era só uma defesa de si perante eles, um expediente para fugir à normalidade abúlica em que os outros se deixavam ir, como água de um rio que não resiste em fluir em direcção à foz.

O dilema estava enraizado. Hesitante, não sabia se a mudança era sinónimo de cansaço do que era há tantos anos, ou se destilava a exigência de ser diferente – agora, não diferente da normalidade imperante, diferente daquilo a que estava habituado a ser. Nesta recriação de personalidade, moldava-se aos outros numa azáfama de socialização forçada. Daí a mudança – da natureza céptica, do culto do caos, do elogio à desconstrução; para o optimismo que engrandece, cardápio regenerador do que era dantes para o outro eu que queria ser.

Suspeitava que era uma atitude forçada, comprometida, fugindo da genuinidade. Num mundo que se ajoelha perante as finalidades, espezinhando os meios escolhidos, aquelas dúvidas eram relegadas para segundo plano. Na necessária mutação, sentia-se oportunista de si mesmo. Mas pressentia que o acto de regeneração era uma exigência necessária, como se fosse o derradeiro balão de oxigénio onde bebe a inspiração de uma vida com cor.

Na introspecção, uma dúvida persistia: não sabia se era um cínico optimista, ou um optimista cínico.

Sem comentários: