19.4.05

Morte ao relativismo (Ratzinger dixit)

Os católicos andam em pulgas. Na vacatura papal, as ânsias que seja anunciado o sucessor, o pastor que indica o caminho ao ordeiro rebanho. O acontecimento catalisa as atenções da comunicação social. Especulações sem conta, tentando adivinhar quem será o contemplado. No êxtase do nacionalismo inconsequente, andam as carpideiras caseiras num frémito: há dois candidatos lusos bem colocados para a investidura papal. A comunicação social só presta atenção ao conclave. Ainda ontem o noticiário das 20.00 horas na RTP já ia com 35 minutos e a notícia era sempre a mesma. A certo ponto as câmaras desceram às santas terrinhas dos dois cardeais lusitanos. Deram a palavra ao santo povinho que anda delirante com a possibilidade de ver um dos seus a ascender ao cargo papal. Dizia um ancião das beiras: “xe ixo acontexer, é como xe o xéu dexexe à terra”. Cansado, mudei de canal.

Naqueles 35 minutos de excitação colectiva, a RTP esqueceu-se de um pequeno detalhe que tem a maior das importâncias: um dos cardeais que parte com vantagem, o alemão Ratzinger, aproveitou uma missa para sovar o sacrílego relativismo. Culpou-o pelos males do mundo, pela intolerável perseguição às pessoas de fé, à igreja católica. Para a teutónica eminência, “estamos a avançar para uma ditadura de relativismo que não reconhece nada como certo e que tem como objectivo central o próprio ego e os próprios desejos”. Imparável, fulminou todos os que se arregimentam no caliginoso clube do relativismo: “o pequeno barco do pensamento dos numerosos cristãos é agitado por estas vagas, que oscilam entre um extremo e outro: do marxismo ao liberalismo, até à libertinagem, do colectivismo ao individualismo radical, do ateísmo a uma vaga mística religiosa”.

Não admira que o cardeal alemão faça as delícias do esquerdalho que consome o seu tempo a zurzir na igreja. São atitudes destas que afastam as pessoas que sabem pensar pela sua própria cabeça. Há certas metáforas eclesiásticas que dizem muito: a do rebanho que segue sem pestanejar os ditames dos clérigos, é sintomática. Há os dogmas que alicerçam a fé. Ou se acredita, ou se é dissidente. Não há meio-termo.

Escutemos Ratzinger: maldito relativismo, a barreira que impede seres descomprometidos de se entregarem, de corpo e alma, aos destinos da igreja. É o relativismo que desperta as consciências para o viés da igreja, tenta fazer com que as pessoas se libertem do seguidismo cego, surdo e mudo que a hierarquia eclesiástica alimenta. O relativismo questiona tudo. Tanto que se afogueia num mar de incertezas: nada é certo, e dos debates nascem apenas novas perguntas a que se deve tentar dar resposta. Numa coisa o cardeal tem razão: algumas das facções que enumerou como o séquito do hediondo relativismo manifestam uma intolerância que é a antítese do relativismo. É o que sucede com a intolerância em relação à igreja, com as modas anti-clericais que falam alto, e com cólera, contra a igreja. Estas facções do relativismo cavam a sua sepultura: descambam para um tipo semelhante de intolerância que durante tanto tempo a igreja católica cultivou.

Não é a razão que importa para um relativista. É a tolerância, a discussão com o outro, a troca de ideias, salutar, apaixonada mas serena. Um relativista questiona tudo o que o rodeia. Desconfia dos arautos da certeza. Estes são os adversários de estimação do relativista. A sua dialéctica leva-o a uma encruzilhada: em vez de certezas, de respostas para as questões que se erguem no horizonte, apenas mais dúvidas. Talvez seja a não apetência pela certeza que leva católicos empedernidos (como Ratzinger) a censurar o relativismo. Porque sabem que só conseguem arregimentar fiéis se lhes incutirem um modo de pensar que invoque a certeza, a confiança nos dogmas oferecidos pelo catecismo católico.

Ratzinger devia saber que um relativista acaba por se embrenhar em contradições problemáticas: só tem a certeza que não há certezas. No que afirma uma certeza. Mas essa é a beleza do relativismo: reconhecer que a sua fórmula encerra a negação do enunciado. O que também causa confusão a quem está habituado a quadros mentais compartimentados, herméticos, à prova de qualquer rombo. Para um relativista, a ênfase está em provar que a mesma coisa pode ser vista de diversos ângulos, assim sejam diferentes os olhos através dos quais a coisa é observada. Na certeza de que mesmo esta “certeza” tem uma falibilidade angustiante para quem se afadiga em procurar certezas a toda a hora. A incerteza, essa é a única “certeza” que o relativista tem como adquirida.

Sem comentários: