3.3.05

Não darás a comunhão a quem usar contraceptivos

Deve ser o novo mandamento das sagradas escrituras que regem os sacerdotes católicos. A novidade veio na insólita forma de anúncio mandado publicar pelo padre Nuno Serras Pereira. Não são só os contraceptivos o alvo da fúria do clérigo fundamentalista. A recusa em participar no ritual da comunhão estende-se a todos os que aceitam a reprodução assistida e que estejam de acordo com a lei do aborto.

De acordo com a fonte, o padre Serras Pereira invocou um preceito do Código Canónico para fundamentar a sua decisão. Está no seu direito. Cada qual fica com as decisões que a consciência determina. Também terá de arcar com as consequências dos seus actos. Para começar, a exposição ao ridículo. Apesar da ausência de fé, indigna-me a subtil perseguição movida aos católicos pelos cânones do politicamente correcto. São notícias destas que enchem de contentamento os inquisidores hodiernos, os que não querem esquecer as diatribes em que a igreja foi pródiga no passado e não perdoam o mais pequeno vestígio de intolerância vinda de agentes que se movem na hierarquia católica. À intolerância respondem com mais intolerância, perdendo a razão.

Se a igreja sabe da intolerância que lhe é devotada, menos se percebe como pessoas de dentro da igreja escolhem actos desta estirpe, que os ridicularizam e esvaziam a credibilidade junto da sociedade. Sei que a fé não se mede pelo barómetro das sondagens que estimam os avanços e recuos da igreja junto do público. Mas também não se pode eximir à responsabilidade de ser uma igreja adequada aos tempos que vivemos. Por mais que lhe custe, não são os tempos modernos que se têm que ajustar aos dogmas da igreja, mas o contrário.

Como se não bastasse o passado recheado de intromissões na esfera privada dos crentes, a igreja insiste no procedimento. Exibições como a do padre Serras Pereira tresandam a maniqueísmo. Invadem as opções pessoais dos crentes que, no seu íntimo, sentem a necessidade (ou a obrigação – para o caso é indiferente a distinção) de partilhar o momento da comunhão. Quando o patusco padre vem anunciar que se recusa a dar a comunhão a quem se afastar das condições por ele enunciadas, está a violentar os espíritos habituados a ir à missa que ele celebra. Representa uma condicionante da vontade individual. É a negação da liberdade que deve fundamentar as escolhas de cidadãos descomprometidos. Exprime a ideia de que a fé não é um acto de libertação dos crentes, antes uma entrega a dogmas que tolhem a afirmação do eu que há dentro de cada crente.

Incredulidade. Foi a primeira reacção ao dar conta da notícia. É em momentos deste calibre que faz sentido o diagnóstico dos cépticos, quando afirmam que o mundo está de pantanas, mergulhado numa insanidade incompreensível. Depois da fase atónita, os pés regressam à terra. Ensaiam-se leituras alternativas. Tenta-se indagar se não há outros objectivos, escondidos atrás de uma leitura simplista do episódio. A espontaneidade do raciocínio leva a acreditar que, com esta atitude, o padre Serras Pereira está a afastar muitas ovelhas do seu rebanho habitual. Afastará aquelas pessoas que não se revêem nas orientações intoleráveis que tentam condicionar a sua vontade. Feridos na sua dignidade, estes crentes farão a vontade ao padre Serras Pereira: não estão dispostos a desrespeitar o dever de consciência que os impede de comungar contra a vontade de quem lhes oferece a comunhão, desviando-se para outros templos.

Bem vistas as coisas, até pode ser que tudo se passe ao contrário. É então que descubro que o padre Serras Pereira é um génio do marketing. Uma mente peregrina, que trouxe as virtudes do marketing para a religião. Aposto que depois deste anúncio passará a ter as suas celebrações repletas. De crentes que acham mais importante continuar a cumprir os seus deveres de consciência, mais do que respeitar as obrigações ditadas pelos caprichos do padre. E de muitos não crentes, que numa posição de desafio farão, pelo menos uma vez, o sacrifício de atender a uma missa do padre Serra Pereira e de comungar, em desafio à patética declaração.

Assim se enche uma igreja. Assim um padre que estava condenado ao anonimato passou para as luzes da ribalta. E enquanto a hierarquia eclesiástica não se demarcar deste ridículo anúncio, subscreve o repto do padre Serras Pereira. Será a confirmação de que a igreja é um instrumento de manipulação do livre arbítrio das pessoas. Uma igreja totalitária, anacrónica, deplorável.

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